terça-feira, 30 de janeiro de 2024

No 31. A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «Passavam na piazza os foliões. Don Francisco atravessou por entre a multidão ululante em direcção à embaixada. Marco Túlio saiu de detrás de uma das colunas da arcada, colocando na cara uma máscara de nariz arrebitado…»

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A Ponte dos Suspiros. Os Sinais do Corpo

«Voltou atrás. Entrou nos paços. Procurou Marco Quirini. Vós? Senhor! Como vos atreveis a...? Que é lá, embaixador? ... a... a..., sufocava. Que se passa? ... a libertar o prisioneiro, mal eu viro costas? Libertar o prisioneiro? Vi-o agora mesmo a passear-se sob as arcadas. Estais a sonhar. Vinde comigo. Desceram aos baixos do edifício, meteram por sob a escadaria aos calabouços e chegaram a uma porta. Espreitai, disse o juiz.

Don Francisco espreitou pelo postigo. O prisioneiro dormitava, estendido no catre. O embaixador fechou o postigo, desorientado. Subiram em silêncio. Até à vista, embaixador, despediu-se o juiz, virando costas com desprezo.

Passavam na piazza os foliões. Don Francisco atravessou por entre a multidão ululante em direcção à embaixada. Marco Túlio saiu de detrás de uma das colunas da arcada, colocando na cara uma máscara de nariz arrebitado, misturou-se com a turba e seguiu-o de perto até o ver entrar em casa. Depois deixou-se ir no grupo mimando dança e cantares com as moças:

Brunetta ch'hai le rose alle mascelle le labbra dello zucchero rosato garofolate porti le mamelle che ali piú che non fa lo moscato...

Na face rosa a preceito trigueira lábios de mel dois cravos as

flores do peito embriagas que nem moscatel...

No canto da piazza saiu para o Salvádego, guardou a máscara e meteu para Beneto. Quem és tu, Marco Túlio, meu farsante acabado? De Sebastião meu senhor, que ainda há pouco assustaste Don Francisco de Vera y Aragón, passaste a comediante pimpão. Dias atrás, os esculcas espanhóis que, para interceptarem o correio, esperavam a posta numa encruzilhada de Val Venosta, não se aperceberam do pobre almocreve que seguia com a caravana. Lembras-te do frade que foste, a bater ao portão do padre José Teixeira no convento dos jacobinos em Paris? Do guarda-costas de aspecto temível, pistolões à cinta, que comboiou o senhor Dom João de Castro na viagem para Veneza? Tua mulher Paola Galardetta se te visse agora não te reconheceria. Coitada! Já não sabe qual, entre tantos, é o seu marido...

E tu, sabes quem és? Qual és tu? De tão mal habituado, já nem sabes, não é?... E isso que importa, se a fidelidade a um amigo o dita? Caminhas na baliza oposta da traição. Também usa máscaras Nuno Costa. Só tu o sabes, mas aguardas em silêncio o momento propício de o desmascarar. Despojar-se homem de si, supremo sacrifício, a menos que seja despojamento fictício como o desse traidor: finge um coração que não tem, por mor da ganância de poder, de dinheiro, de se sobrelevar aos outros... Eu te amanharei, fi de pu…, eu te amanharei... Não, não é um nariz artificial, o cetim da mascarilha, os postiços de bigodes, suíças, cabelo. Isso é disfarce, travestimento, mime que eu faço por jogo e diversão.

Importa é a identidade intrínseca, o eu íntimo. Meu senhor rei, não sei quem sou...

Estavam reunidos em San Beneto. Aguardavam a chegada, a todo o momento, dos que frei Estêvão convocara de fora. Marco Túlio fora ajudar Dom João de Castro a instalar-se. Na sala discutiam alguns amigos.

Como é possível pensardes assim?, levantou-se quase apopléctico Pantaleão Pessoa Neiva. Isso é renegardes a pátria, a vossa condição de português. Não renego coisa nenhuma, respondeu Nuno Costa de má cara. Não se renega aquilo que não existe. Não existe? Isso a que chamais pátria morreu. Como ousais? Sois apátrida ou substituístes a vossa por outra alheia?

Que coisa é pátria? Há hoje em Portugal, sabeis muito bem, quem tenha pejo de pronunciar sequer a palavra. O último que a pronunciou foi um poeta que teve a sorte de morrer antes de lhe assistir ao enterro. Enterrou-a a loucura de um rei que levou o reino a fazer a guerra de África...

Recuso-me a ouvir-te, saiu da sala Pessoa, incomodado. Frei Lourenço olhou para Nuno Costa e, com voz que forçava ser apaziguada, perguntou: E pode saber-se em que assenta tão funesta opinião? Na realidade, respondeu o companheiro. Nada mais do que na realidade. Não lhe chameis funesta. Vinte e poucos anos, reparai, bastaram vinte e poucos anos para se apagar a identidade da pátria e da nacionalidade. Não se apagarão. Jamais! A flor do reino morreu em Alcácer. A nobreza que restou bandeou-se com Castela... Quem vos ouvir pensará que...» In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

Cortesia de Difel/JDACT

JDACT, Fernando Campos, História, Literatura,