A Ponte dos Suspiros. Os Sinais do Corpo
«Voltou
atrás. Entrou nos paços. Procurou Marco Quirini. Vós? Senhor! Como vos atreveis
a...? Que é lá, embaixador? ... a... a..., sufocava. Que se passa? ... a
libertar o prisioneiro, mal eu viro costas? Libertar o prisioneiro? Vi-o agora
mesmo a passear-se sob as arcadas. Estais a sonhar. Vinde comigo. Desceram aos
baixos do edifício, meteram por sob a escadaria aos calabouços e chegaram a uma
porta. Espreitai, disse o juiz.
Don
Francisco espreitou pelo postigo. O prisioneiro dormitava, estendido no catre.
O embaixador fechou o postigo, desorientado. Subiram em silêncio. Até à vista,
embaixador, despediu-se o juiz, virando costas com desprezo.
Passavam
na piazza os foliões. Don Francisco atravessou por entre a multidão ululante em
direcção à embaixada. Marco Túlio saiu de detrás de uma das colunas da arcada,
colocando na cara uma máscara de nariz arrebitado, misturou-se com a turba e seguiu-o
de perto até o ver entrar em casa. Depois deixou-se ir no grupo mimando dança e
cantares com as moças:
Brunetta
ch'hai le rose alle mascelle le labbra dello zucchero rosato garofolate porti
le mamelle che ali piú che non fa lo moscato...
Na
face rosa a preceito trigueira lábios de mel dois cravos as
flores
do peito embriagas que nem moscatel...
No
canto da piazza saiu para o Salvádego, guardou a máscara e meteu para Beneto.
Quem és tu, Marco Túlio, meu farsante acabado? De Sebastião meu senhor, que
ainda há pouco assustaste Don Francisco de Vera y Aragón, passaste a comediante
pimpão. Dias atrás, os esculcas espanhóis que, para interceptarem o correio,
esperavam a posta numa encruzilhada de Val Venosta, não se aperceberam do pobre
almocreve que seguia com a caravana. Lembras-te do frade que foste, a bater ao
portão do padre José Teixeira no convento dos jacobinos em Paris? Do
guarda-costas de aspecto temível, pistolões à cinta, que comboiou o senhor Dom
João de Castro na viagem para Veneza? Tua mulher Paola Galardetta se te visse
agora não te reconheceria. Coitada! Já não sabe qual, entre tantos, é o seu marido...
E
tu, sabes quem és? Qual és tu? De tão mal habituado, já nem sabes, não é?... E
isso que importa, se a fidelidade a um amigo o dita? Caminhas na baliza oposta
da traição. Também usa máscaras Nuno Costa. Só tu o sabes, mas aguardas em
silêncio o momento propício de o desmascarar. Despojar-se homem de si, supremo
sacrifício, a menos que seja despojamento fictício como o desse traidor: finge
um coração que não tem, por mor da ganância de poder, de dinheiro, de se sobrelevar
aos outros... Eu te amanharei, fi de pu…, eu te amanharei... Não, não é um
nariz artificial, o cetim da mascarilha, os postiços de bigodes, suíças,
cabelo. Isso é disfarce, travestimento, mime que eu faço por jogo e diversão.
Importa
é a identidade intrínseca, o eu íntimo. Meu senhor rei, não sei quem sou...
Estavam
reunidos em San Beneto. Aguardavam a chegada, a todo o momento, dos que frei
Estêvão convocara de fora. Marco Túlio fora ajudar Dom João de Castro a
instalar-se. Na sala discutiam alguns amigos.
Como
é possível pensardes assim?, levantou-se quase apopléctico Pantaleão Pessoa
Neiva. Isso é renegardes a pátria, a vossa condição de português. Não renego
coisa nenhuma, respondeu Nuno Costa de má cara. Não se renega aquilo que não
existe. Não existe? Isso a que chamais pátria morreu. Como ousais? Sois
apátrida ou substituístes a vossa por outra alheia?
Que
coisa é pátria? Há hoje em Portugal, sabeis muito bem, quem tenha pejo de
pronunciar sequer a palavra. O último que a pronunciou foi um poeta que teve a
sorte de morrer antes de lhe assistir ao enterro. Enterrou-a a loucura de um
rei que levou o reino a fazer a guerra de África...
Recuso-me
a ouvir-te, saiu da sala Pessoa, incomodado. Frei Lourenço olhou para Nuno
Costa e, com voz que forçava ser apaziguada, perguntou: E pode saber-se em que
assenta tão funesta opinião? Na realidade, respondeu o companheiro. Nada mais do
que na realidade. Não lhe chameis funesta. Vinte e poucos anos, reparai,
bastaram vinte e poucos anos para se apagar a identidade da pátria e da
nacionalidade. Não se apagarão. Jamais! A flor do reino morreu em Alcácer. A
nobreza que restou bandeou-se com Castela... Quem vos ouvir pensará que...» In
Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN
978-972-290-806-1.
Cortesia de Difel/JDACT
JDACT, Fernando Campos, História, Literatura,