Prólogo
Rafael, Dezembro
de 2012
«Como dois noivos numa festa de
casamento, valsando ao som do Danúbio Azul, a economia e o amor movem-se juntos
e ao mesmo ritmo. Se a música acelera, em crescendo, a economia puxa pelo amor
e há mais casamentos românticos e filhos a nascer. Mas, quando o par abranda, é
porque a economia se retraiu primeiro e o amor logo a segue, murchando também.
Se na economia crescem os
rendimentos, no amor crescem os rebentos; mas, se na economia nascem as
dívidas, no amor nascem as dúvidas, ninguém mais pensa em procriar e
multiplicam-se (terrível costume!) as separações dolorosas e as acesas disputas
sobre dinheiros e patrimónios.
Para a maior parte dos seus
amigos e para as respectivas famílias, a separação de Leonardo e Constança
justificou-se com essa racionalidade fria e foi a queda da economia que
precipitou o desmoronar do amor, como se o final daquele casamento não passasse
do resultado lógico de uma equação matemática.
Houve quem tenha dito que o casal
entrou em rotura devido à desgraça das empresas de Leonardo, ou porque
Constança não se soube adaptar ao fim dos luxos, coisas assim. Na mágoa dorida
e raivosa dela, e até na escandalosa infidelidade dele, foram sempre
encontrados motivos financeiros de justificação, como se a degradação geral das
emoções e dos desejos de ambos, os seus conflitos abertos, as suas abismais
decepções ou os seus erros vulgares fossem meras consequências do desarranjo
geral da economia do país e do mundo, e não existisse uma causa mais profunda,
um pecado original mais impuro e imundo, que explicasse tantos e tão
perturbadores estragos.
Rafael, amigo de ambos e que
neste momento está sentado na cadeira de um avião, sabe que esse segredo antigo
existe e mancha aquela história de amor; sabe que o falhanço daquele casamento
não se explica apenas culpando a economia pela destruição do amor. Contudo, é o
único que o sabe e por isso tem uma narrativa alternativa, diferente da dos outros
familiares e amigos, e por isso também é o único que, além de se sentir triste,
se sente culpado. Sentado a seu lado está o seu melhor amigo, Leonardo, que nem
fala. Não sorri à hospedeira, não olha sequer pela janela do avião, que vai
descolar em breve da pista do aeroporto da Portela. A sua imaginação espiritual
encontra-se contaminada pela incerteza, teme as consequências de um acidente no
Brasil e teme pela mulher (ou ex-mulher?, como defini-la, se eles se separaram,
mas nunca se divorciaram?). Mais do que isso, teme pela saúde dos seus filhos,
e reza em silêncio.
Já Rafael recorda muito e
culpa-se. Ao longo da viagem até Salvador, criará dentro do coração a certeza
de que podia ter evitado o que se passou, o que se está a passar e até o que se
virá a passar, que ele ainda não sabe o que é, mas que irá acontecer. Sente
que, se tivesse contado o segredo que conhece mais cedo, talvez o destino de
todos fosse diferente. Ambos estão atormentados. E, no entanto, ainda ontem à
noite os dois alimentavam esperanças de que as coisas se começassem a compor no
casamento de Leonardo. Ainda ontem, a vida dele parecia prestes a terminar uma
volta inteira sobre si própria, como se ele viajasse num cesto de uma roda
gigante, que agora o trazia de volta ao ponto de felicidade original de onde
partira.
Durante o voo para o Brasil,
Rafael irá recordar o ciclo de vida daquele casamento: o mito da felicidade
inicial, a festa fantástica na quinta de Constança, o nascimento dos filhos, as
primeiras decepções e desavenças e depois a rotura, a separação, e aquela fuga imprevisível
de Constança para o Brasil, com o seu novo amor; que deixou Leonardo a morrer
de saudades dos filhos durante o ano inteiro de 2012. Um homem sem filhos é um
homem amputado, e assim viveu Leonardo mais de trezentos dias. Era como se
existisse nele aquela angústia antiga e milenar, perante a ausência dos filhos,
que na história da humanidade fora quase sempre prerrogativa das mães. Hoje,
também os pais sofrem disso, e ficam tão ou mais desesperados do que as mães,
pois perderam a capacidade de imaginar o mundo sem os filhos, e nesse vazio nasce-lhes
uma perturbação próxima da loucura, uma saudade trágica e doente, que os desequilibra.
Depois,
de surpresa, nascera a reaproximação entre o casal. Nos últimos tempos, à medida
que se aproximava o Natal de 2012, Constança mudara. Muitas vezes, é isso que concluiu
Rafael, as mulheres veem a vida através dos olhos dos homens que amam. Enquanto
ela amou João, o outro, o que a levou para o Brasil, para ela Leonardo era um traste,
um patife, um crápula. Quando o outro a começou a abandonar, lá longe, no Brasil,
logo o anterior amor, o marido (ou ex-marido?), recuperou as suas renovadas
cores». In Domingos Amaral, Casamento de Sonho, Casa das Letras, 2014, ISBN
978-972-462-237-8.
Cortesia da CasadasLetras/JDACT
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