Roberto Antunes Palma Lobo, 1881-1916
«Sentado neste duro banco de
madeira, enquanto espero a morte do meu melhor amigo, concluo que não me
surpreende este seu destino trágico. De certa forma, já o esperava. Os Palma
Lobo que o antecederam viveram o amor sempre de uma forma dolorosa, excessiva e
absoluta. Para eles, o oposto da morte não era meramente a vida, mas sim o amor.
Sem amor, a vida parava, perdia o seu sentido. Sem amor, a criação do mundo
parava, e só lhes restava morrerem. Foi assim com o bisavô, o avô ou o pai de Salvador,
e será assim com ele. Conheço as histórias dos quatro homens Palma Lobo, e sei
que é uma mentira quando me dizem que já ninguém morre de amor. Morre-se de amor hoje, como se
morreu de amor no passado.
Nessa mesma tarde, Salvador
levou-me à biblioteca do monte de Grândola. Era uma sala nos fundos da casa,
cujo nome de biblioteca era pomposo de mais. Tratava-se apenas de uma
assoalhada pequena e escura, que cheirava a mofo e só dispunha de uma pequena janela,
e onde várias teias de aranha eram testemunhas do esquecimento a que o local
era votado. Havia estantes a ocuparem as quatro paredes, armários antigos de
mogno com longas portas e, embora existissem muitos livros, não era
propriamente um local de leitura, mas antes uma espécie de depósito de tralhas
velhas.
Quatro gerações da família Palma
Lobo tinham arrumado ali os seus livros preferidos de forma displicente. Nas
prateleiras descobriam-se enciclopédias degradadas, monografias variadas,
bíblias e colecções de revistas antigas, romances de capas duras, livros de
história ou infantis, autores portugueses e estrangeiros. Tudo desarrumado, sem
ordem, misturando o antigo com o recente, o envelhecido com o bem conservado. Salvador
mandou-me ignorar as estantes e desatou a abrir os armários, rodando grandes
chaves nas fechaduras.
Sabes que esta foi a única sala
onde os comunistas não vieram? Depois do 25 de Abril, a herdade funcionara como
UCP (unidade colectiva de produção) entre o Verão de 1975, data em que fora
ocupada pelos comunistas e pelas tropas do MFA, e 1985, quando os Palma Lobo
tinham conseguido reavê-la. Um a um, o meu amigo foi retirando caixotes dos
armários, colocando-os em cima de uma pesada mesa de carvalho, no meio da sala.
Eram de cartão e de várias cores, e ele começou a abri-los, investigando o seu
interior. A certa altura parou, a examinar uma fotografia. Olha, este era o meu
bisavô. Passou-me o pequeno rectângulo de cartão. Era um exemplar envelhecido,
do princípio do século XX. Em fundo sépia, baço de antiguidade, um medalhão
oval cinzento esbatido revelava a imagem de um homem de chapéu e camisa pretos.
De feições arredondadas, testa alta, sobrancelhas finas e um bigode cortado
rente, o que mais impressionava na fotografia era o seu ar infinitamente
triste.
Foi depois de a minha bisavó
morrer, disse Salvador. No verso estava a data da fotografia, escrita a negro
numa caligrafia miudinha: Fevereiro de 1916. Ele morreu uns meses mais tarde,
em Maio desse ano. Roberto Antunes Palma Lobo, o primeiro da família a
transportar aquele nome, apresentava um olhar sem brilho, abatido, como se a
vida lhe custasse a viver. A boca estava fechada, as bochechas descaídas e sem ânimo
e uma aura escura rodeava os seus olhos. Era como se aquela alma permanecesse
em sofrimento, quase cem anos passados.
Parece muito triste, comentei. Nunca
recuperou da morte de minha bisavó. Depois mostrou-me outra fotografia: Repara
na diferença... Passou-me um rectângulo de cartão um pouco maior que o
anterior. Era datado de 1912 e, no mesmo tom sépia e acinzentado, apareciam
três pessoas: o bisavô, com o mesmo chapéu negro na cabeça, mas desta vez de
camisa branca; a bisavó, com um ar sorridente e orgulhosa; e um rapazito de
cinco anos, também ele muito risonho.
É a minha bisavó, Josefina
Cardoso Libério Palma Lobo. E o miúdo é o meu avô Álvaro. Salvador sorriu e
acrescentou que aquela fotografia devia ter sido tirada em Lisboa, pois eles só
tinham comprado a herdade de Grândola em 1913. Foi depois do tal problema
político que o meu bisavô teve em Lisboa. Deve ter ficado mesmo zangado, para
mudar de vida e passar a viver no Alentejo... A bisavó de Salvador era uma mulher
bonita, com feições finas, uns olhos negros grandes e um cabelo preto apanhado
atrás num carrapito. Parecia feliz, bem como o miúdo. Mas o que mais me
surpreendeu foi a mudança de expressão na cara do bisavô Roberto. Era como se
fosse um ser diferente. O seu olhar era vivo e brilhante, estava sorridente e orgulhoso
no seu papel de marido e pai. Quatro anos mais tarde, fotografado sozinho, era
um homem completamente derrotado pelas sombras, um viúvo em solidão.
Ele adorava a minha avó...
Coração negro, rosas negras, comentou Salvador. Uma homenagem a um amor
perdido... E triste, disse eu. Mas é bonito. Morrer de amor é bonito,
sentenciou Salvador». In Domingos Amaral, Já Ninguém Morre de
Amor, Oficina do Livro, 2008, ISBN 978-972-461-802-9.
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