O Breviário
«Estávamos nisto, chegámos a uma
aldeia em que só encontrámos mulheres e crianças, muito espantadas e assustadas
com o nosso aparecimento. Homens nem cheiro. Os caloiros, que eram conhecidos,
entraram com elas à fala. Que era feito dos seus homens? Ah! Éramos nós! E elas
que ouvindo vir gente pelo caminho em altas vozes pensaram serem corsários
mouros! Era uma mulher ainda nova que falava, com o filhinho muito sujo ao colo.
Então foi por isso que os homens
desapareceram? Os mouros, intervinha uma outra, o que queriam era homens que metessem
a remos. Mulheres? Isso só se as fossem vender muito longe a terras do
grão-turco!... Mas desse tinham eles medo por mor das cruéis justiças com que
os mandava castigar. As mulheres, sendo novas, dizia a primeira, fazem aquilo
que sabeis e não se importam mais com elas Pouco a pouco vinham-se chegando
alguns dos homens que se haviam escondido e, corridos e envergonhados,
procuravam dar-nos escusa da sua fugida da mesma maneira que as mulheres o
tinham feito.
Que
distância é daqui ao labirinto?, perguntou um dos nossos companheiros a um
daqueles homens. Aí umas quatro milhas... Eu conheço muito bem o caminho,
destacava-se um outro. E oferecia-se: Se quiserdes, irei convosco. Concertada a
ida e assentada a hora da partida, fizemos uma breve refeição por ser altura
disso. Despedimo-nos dos caloiros. Da nossa parte pedissem ao abade se dignasse
mandar uns caloiros à nau para lhe enviarmos alguma caridade em recompensa da
muita que nos fez no seu mosteiro.
Quase
à hora de véspera chegámos ao sítio. Era junto de uma outra aldeia maior que a
primeira. Apresentaram-nos um homem já de idade que costumava ser o guia,
pagando-lhe seu trabalho. Tudo contado, pusemo-nos a caminho e breve chegámos à
porta do labirinto. O guia, ajudado por um mancebo que vem com ele, retira duas
grandes pedras da boca por onde havemos de entrar, que é uma espécie de porta
de cova. Entram ambos adiante, cada um com seu morrão aceso na mão, e nós após
eles, de pés e mãos porque a entrada é apertada. Caminhamos uma grande milha
por debaixo de abóbadas e abóbadas feitas da mesma rocha, sem vermos nada de
notável, salvo o intrincado das diversas estâncias e o soar por elas uma
fortíssima ventania sem se atinar por onde possa entrar. Chegamos finalmente a
uma quadra muito espaçosa. Na parede, uma argola de bronze, tão grossa que
pesará um bom quintal. Fora ali, informa-nos o nosso guia - que estivera preso
o monstro Minotauro.
A
uma parte desta quadra fica uma pequena entrada, como a inicial. Por ali, dizia
o homem, continuava o labirinto até ao mar, do outro lado do arquipélago... E
incitava-nos a prosseguir a visita. Não!, adiantei-me eu, enfadado da fábula
que tudo aquilo era e de não haver nada de notar. É jornada muito comprida e já
é bastante tarde. O principal está visto e eu sinto-me extremamente cansado.
Todos concordaram e tornámos a sair
por onde tínhamos entrado. Eram duas ou três horas de noite quando chegámos à
aldeia. Repousámos junto de uma grande fogueira que a mulher do nosso guia
tinha acendido, por falta de camas, porque naquelas aldeias é tudo miséria.
Logo que amanheceu, seguimos caminho em direcção à nau. Mal chegámos perto do
mar e fomos vistos de bordo, meteu-se o patrão num batel e veio-nos receber,
com grande alegria de todos e, satisfazendo ao nosso guia e a seu companheiro,
se despediram estes de nós contentes da paga. Mas quando entrávamos no batel
para regressar à nau, o patrão, que com o olhar perscrutava miudamente o nosso
grupo como a contar se estávamos todos, perguntou-me e a frei Zedilho: Não
vistes vossos irmãos Pietro e Bertino? - Não. Porquê? Há dois dias me pediram
licença para irem a terra e ainda não tornaram. julguei que se teriam juntado a
vós. Não, não os vimos. Quereis que os procuremos? O ponto é esse. Procurá-los,
onde?» In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Alfaguara, 2012, ISBN
978-989-672-114-5.
Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT
JDACT, Fernando Campos, Literatura, A Arte da Escrita, História,