quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

Já Ninguém Morre de Amor. Domingos Amaral. «Casou três vezes. Como eu... Bebeu um gole do seu whisky e continuou: Diz-se que as duas primeiras mulheres endoideceram. Era do género torturador... Passavam as passas do Algarve com ele e estoiravam os fusíveis»

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Roberto Antunes Palma Lobo, 1881-1916

«Foram todos homens invulgares, contou-me o meu amigo. Passaram por Moçambique, Angola, Lisboa, Alentejo e Brasil. A vida deles é uma epopeia à espera de ser revelada.

Entusiasmado com a empreitada, insistiu comigo, e prometeu que me abriria as bibliotecas da herdade de Grândola e da casa de Lisboa, onde eu iria certamente descobrir cartas, diários, fotografias antigas, registos, um infindável material para a narrativa. Além disso, falou-me ao bolso. Pago-te bem, meu velho. Propôs-me uma avença mensal de mil euros e ofereceu-me também as viagens aos locais onde o bisavô nascera, o avô vivera e o pai morrera.

Vais primeiro a Maputo, onde nasceu o meu bisavô! Ficas no Polana, é um óptimo hotel. Sorri, divertido com a excitação dele. Depois, vais a Angola, onde o meu avô teve negócios nas minas. Não conheço Angola. Ele nem me ouviu. - Por fim, acabas no Brasil, para tirar a limpo a morte do meu pai. Dizem que se suicidou, mas não sei se acredito.

Fiquei estarrecido, paralisado a olhar para ele, como um coelho ofuscado pelos faróis de um carro numa noite escura. Sempre ouvira dizer que o pai de Salvador se matara com um tiro nas têmporas, numa ruela escura do Rio de Janeiro. Mas o teu pai não... - balbuciei. A mim também sempre me disseram isso, mas... Salvador deu uma baforada. Depois, levou um dedo à boca, molhou-o com cuspo e passou o dedo no charuto, para enrolar melhor a folha de tabaco.

A minha mãe morreu convencida de que ele dera um tiro na cabeça. Mas não tenho a certeza... Há coisas estranhas. Dava-se com malta pesada, era advogado dos bicheiros... Olhou para mim, muito sério: Tu és jornalista, sabes investigar. Já passaram mais de vinte anos! Pode ser que alguém te conte a história verdadeira da morte do meu pai... Fiquei em silêncio por momentos, mas Salvador não me deixou muito tempo para pensar no assunto. Bom, mas isso é o fim da saga. Não se começa pelo fim, não é? Primeiro, tens de investigar o meu bisavô.

O bisavô, Roberto Antunes Palma Lobo, era natural de Moçambique. Filho de um contrabandista, o seu turbulento nascimento ocorrera em obscuras circunstâncias, vagamente pecaminosas, à espera de serem desvendadas. A mãe dele, minha trisavó, morreu ao dar à luz o filho. E o pai dele, o meu trisavô, morrera nove meses antes, assassinado. Nove meses antes... Deixou a suspeita impregnar o meu cérebro. Fez uma pausa, deu uma nova baforada no charuto e, com um sorriso malandro, acrescentou: Há quem duvide de que o meu trisavô fosse o pai da criança... Mas a minha trisavó nunca abriu a boca...

Com uma pompa fingida, abriu os braços: Vais finalmente revelar o pecado original dos Palma Lobo! Confesso que, por esta altura, qual peixe atraído pelo isco, estava prestes a morder o anzol. Salvador ia tecendo a sua teia, fascinando-me com as antigas lendas dos Palma Lobo. Depois, há também a política. O meu bisavô foi deputado, no início da República. Por pouco tempo. Houve uma escandaleira qualquer e abandonou o cargo. Retirou-se aqui para Grândola, para a herdade que acabara de comprar. E aqui morreu. Dizem que de tristeza... O meu melhor amigo deu mais uma passa no charuto e examinou o horizonte. Parecia emocionado.

À nossa frente, estendiam-se hectares de campos verdes, carregados de oliveiras e sobreiros. Ao longe, junto a uma pequena elevação, dezenas de vacas castanhas pastavam, lentas e pachorrentas, os rabos a abanarem para afastar as moscas. Sabes porque é que esta herdade se chama Monte das Rosas Negras? Eu não sabia.

Foi o meu bisavô que a baptizou. Passou os últimos anos da vida a tentar produzir rosas negras ali atrás, numa estufa que construiu. Apontou para lá. Mandava-as vir de Itália... Nasceu-lhe na cara um sorriso melancólico, e suspirou fundo. Era como se sentisse um elo de ligação entre o seu coração e o do bisavô, como se ele compreendesse e se identificasse com aquele homem do seu sangue que não conhecera. As rosas eram uma homenagem à minha bisavó. O meu bisavô adorava-a, paixão à séria! Mas, coitado, ela morreu muito nova. Foi tal o desgosto que foi morrendo aos poucos, a plantar rosas negras, consumido pela saudade...

O melancólico mas bonito romantismo deste episódio caçou-me definitivamente. Olhei em volta e a herdade pareceu-me diferente depois de conhecido o motivo do seu nome. Rosas Negras... Negras como o coração destroçado de um homem. Ficámos calados uns momentos, cada um com as suas emoções e as suas meditações. Depois, o meu amigo começou a falar no avô. Álvaro Libério da Palma Lobo era, segundo o seu neto, um verdadeiro pirata. Do piorio... Amigo de bandidos, ladrões de gado, com fama de aldrabão nos negócios, era um traste com as mulheres. Casou três vezes. Como eu... Bebeu um gole do seu whisky e continuou: Diz-se que as duas primeiras mulheres endoideceram. Era do género torturador... Passavam as passas do Algarve com ele e estoiravam os fusíveis. Deu uma gargalhada, bem-disposto. Senti-o orgulhoso do carácter excessivo do avô, como se isso lhe desse a confiança para ser, também ele, um quebra-cabeças para as mulheres que tinham o azar de sucumbir aos seus encantos.

A minha avó teve mais sorte do que as outras, só o aturou uns anos. Casaram a seguir à guerra, em mil novecentos e quarenta e seis, e ele morreu uns anos depois, em mil novecentos e cinquenta e quatro. Salvador deu uma nova gargalhada: Morreu a fornicar, empoleirado numa camponesa, ali no celeiro. Apontou para o local, um dos casões agrícolas que estavam agora queimados pelo fogo. Era um patife. Danado, meio doido, mas com olho de águia para os negócios. O pior era os sócios. Metia-se com gente enxertada em corno de boi... Observou o chão, como que a procurar na tijoleira do alpendre as razões que tinham levado o avô a buscar a fortuna em tão más companhias. Sorri.

Havia semelhanças entre o avô e o neto. Salvador sempre tivera tendência para ser obscuro nas negociatas e duvidoso em algumas amizades. De há uns anos para cá, dava-se com um perigoso inglês, chamado Conrad. Um duro, traficante de cocaína. Que te parece, perguntou Salvador, empolgado e divertido, a cara aberta num enorme sorriso. Aceitas a minha proposta? Dá um óptimo livro, uma coisa à sul-americana, estás a ver? A odisseia dos Palma Lobo...» In Domingos Amaral, Já Ninguém Morre de Amor, Oficina do Livro, 2008, ISBN 978-972-461-802-9.

Cortesia de OficinadoLivro/JDACT

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