terça-feira, 16 de janeiro de 2024

Os Cavaleiros de São João Baptista. Domingos Amaral. «Para João Pedro, foi um choque a notícia de que Mariana não estava na sua casa do Restelo desde a última quarta-feira. Quão pouco ele sabia da vida dela...»

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Domingo, 17 de Junho de 2002

«Não sabe os nomes das pessoas para quem ela trabalha?, perguntou Júlio César. Havia uma idosa, chamada Alice, para quem a tia trabalha há mais de dez anos. O telefone dela deve estar aí, disse Armando, apontando para o livrinho. Os outros não faço ideia.

Júlio César assentou o número no seu bloco. Se quiser pode falar-lhe daqui, sugeriu Armando. A estas horas não. Falo amanhã, disse o inspector. Armando ficou desiludido. Temos os nossos procedimentos..., explicou Júlio César.

A conversa com a vizinha do lado acrescentou pouco. De relevante, só o facto de Elvira também executar limpezas num stand de automóveis, às segundas, quartas e sextas. Sabia disso?, perguntou Júlio César a Armando. Não, respondeu o rapaz. Sabia que a tia tem mais uns trabalhos. Você falou também num monte.

Armando contou que, há dois ou três meses, reparara que o Corsa andava sujo, cheio de pó. Brincara com a tia, sugerindo que tinha de lavar o carro. Ela rira-se e dissera que era de ir a um monte, uma vez por semana. Mas não acrescentara de quem era, e ele também não perguntara.

Dez da noite. Júlio César estava cheio de fome. Despediu-se do rapaz, prometendo falar-lhe se tivesse novidades. A sua dor de estômago previa o pior. Foi à procura de um restaurante. Uma ideia passou-lhe pelo pensamento, mas não a conseguiu fixar.

Algo que vira em casa de Elvira? O letreiro de um restaurante, anunciando ensopado de borrego, distraiu-o. Parou o carro e entrou. Quando regressou a casa sentia-se pesado do jantar. Foi até à varanda, fumar um cigarro. O Sado estava escuro e sereno, àquela hora da noite. A opressiva solidão começou a envolvê-lo, devagar, como um nevoeiro que vai chegando. Pensou no seu médico psiquiatra. Tinha de lá voltar. Ainda sentia a neurose, a dúvida, as feridas. Incapaz de uma relação emocional estável, era o que ele era. Um deficiente do coração. E não só. Tentou afastar esse pensamento. Isso não. Voltou para dentro, sentou-se no sofá e pegou no livro que começara a ler há uns dias. Alamut, escrito por Vladimir Bartol, um esloveno. Contava a história de uma seita ismaelita, do século XI, liderada por Hassan-lbn-Sabbah, a quem chamavam o Velho da Montanha. Alamut, o ninho da águia, era a sua fortaleza, no Norte do Irão, e fora lá que ele constituíra a sua tropa de choque, os fedayeen, treinados para morrer pelo Islão. Usava o haxixe para enlouquecer os seus fiéis soldados e prometia-lhes o paraíso das virgens. Tornava-os armas mortais e suicidas, que lançava contra os seus inimigos. Na época, os homens de Hassan eram conhecidos como os haschischins, termo que os cruzados haviam adaptado para assassins, a origem histórica da palavra assassinos.

Júlio César suspirou e pensou na loucura desses homens, tão semelhante ao radicalismo actual dos fundamentalistas islâmicos, que se lançavam em aviões contra prédios, que se tornavam bombistas suicidas. Para ele, esse seria o drama do século XXI. Depois do 11 de Setembro, ao inspector nunca mais lhe saíra da cabeça aquela brutal imagem, dos Boeing a entrarem pela torre do World Trade Center. Não voltara a voar.

Domingo, 17 de Junho de 2002

Para João Pedro, foi um choque a notícia de que Mariana não estava na sua casa do Restelo desde a última quarta-feira. Quão pouco ele sabia da vida dela... Foi para fora, dissera-lhe o porteiro, e ele paralisara, sem conseguir balbuciar palavra, a olhar para o homem. Estava aturdido também, pois ficara até às tantas da manhã num torpor, entre a insónia e o sono leve, consumido, a cismar no que poderia ter acontecido a Mariana e no que ela significava para ele». In Domingos Amaral, Os Cavaleiros de São João Baptista, 2004, Leya, BIS, 2015, ISBN 978-989-660-373-1.

Cortesia de Leya/BIS/JDACT

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