Domingo, 17 de Junho de 2002
«Não sabe os nomes das pessoas
para quem ela trabalha?, perguntou Júlio César. Havia uma idosa, chamada Alice,
para quem a tia trabalha há mais de dez anos. O telefone dela deve estar aí,
disse Armando, apontando para o livrinho. Os outros não faço ideia.
Júlio César assentou o número no
seu bloco. Se quiser pode falar-lhe daqui, sugeriu Armando. A estas horas não.
Falo amanhã, disse o inspector. Armando ficou desiludido. Temos os nossos
procedimentos..., explicou Júlio César.
A conversa com a vizinha do lado
acrescentou pouco. De relevante, só o facto de Elvira também executar limpezas
num stand de automóveis, às segundas, quartas e sextas. Sabia disso?, perguntou
Júlio César a Armando. Não, respondeu o rapaz. Sabia que a tia tem mais uns
trabalhos. Você falou também num monte.
Armando contou que, há dois ou
três meses, reparara que o Corsa andava sujo, cheio de pó. Brincara com a tia,
sugerindo que tinha de lavar o carro. Ela rira-se e dissera que era de ir a um
monte, uma vez por semana. Mas não acrescentara de quem era, e ele também não
perguntara.
Dez da noite. Júlio César estava
cheio de fome. Despediu-se do rapaz, prometendo falar-lhe se tivesse novidades.
A sua dor de estômago previa o pior. Foi à procura de um restaurante. Uma ideia
passou-lhe pelo pensamento, mas não a conseguiu fixar.
Algo que vira em casa de Elvira?
O letreiro de um restaurante, anunciando ensopado de borrego, distraiu-o. Parou
o carro e entrou. Quando regressou a casa sentia-se pesado do jantar. Foi até à
varanda, fumar um cigarro. O Sado estava escuro e sereno, àquela hora da noite.
A opressiva solidão começou a envolvê-lo, devagar, como um nevoeiro que vai
chegando. Pensou no seu médico psiquiatra. Tinha de lá voltar. Ainda sentia a
neurose, a dúvida, as feridas. Incapaz de uma relação emocional estável, era o
que ele era. Um deficiente do coração. E não só. Tentou afastar esse
pensamento. Isso não. Voltou para dentro, sentou-se no sofá e pegou no livro
que começara a ler há uns dias. Alamut, escrito por Vladimir Bartol, um
esloveno. Contava a história de uma seita ismaelita, do século XI, liderada por
Hassan-lbn-Sabbah, a quem chamavam o Velho da Montanha. Alamut, o ninho
da águia, era a sua fortaleza, no Norte do Irão, e fora lá que ele constituíra
a sua tropa de choque, os fedayeen, treinados para morrer pelo Islão. Usava o
haxixe para enlouquecer os seus fiéis soldados e prometia-lhes o paraíso das
virgens. Tornava-os armas mortais e suicidas, que lançava contra os seus
inimigos. Na época, os homens de Hassan eram conhecidos como os haschischins,
termo que os cruzados haviam adaptado para assassins, a origem histórica
da palavra assassinos.
Júlio César suspirou e pensou na
loucura desses homens, tão semelhante ao radicalismo actual dos
fundamentalistas islâmicos, que se lançavam em aviões contra prédios, que se
tornavam bombistas suicidas. Para ele, esse seria o drama do século XXI. Depois
do 11 de Setembro, ao inspector nunca mais lhe saíra da cabeça aquela brutal
imagem, dos Boeing a entrarem pela torre do World Trade Center. Não voltara a
voar.
Domingo, 17 de Junho de 2002
Para João Pedro, foi um choque a
notícia de que Mariana não estava na sua casa do Restelo desde a última
quarta-feira. Quão pouco ele sabia da vida dela... Foi para fora, dissera-lhe o
porteiro, e ele paralisara, sem conseguir balbuciar palavra, a olhar para o
homem. Estava aturdido também, pois ficara até às tantas da manhã num torpor,
entre a insónia e o sono leve, consumido, a cismar no que poderia ter
acontecido a Mariana e no que ela significava para ele». In Domingos Amaral, Os Cavaleiros
de São João Baptista, 2004, Leya, BIS, 2015, ISBN 978-989-660-373-1.
Cortesia de Leya/BIS/JDACT
JDACT, Domingos Amaral, Templários, Literatura, Conhecimento,