Mary
«Michael
revelou-se desapontado: É pouco. Depois descobriu um pequeno motivo de alegria:
Olha, o Novidades! Vá lá, pelo menos temos o Cerejeira e a Igreja. Cristo está
connosco. Para o animar, enumerei mais alguns títulos que me pareciam
pro-ingleses: O Diário de Lisboa, o República, e os dois do Porto, o Primeiro
de Janeiro e o Comércio do Porto. E as revistas... Sim, confirmou Michael. A
Guerra Ilustrada e O Mundo Gráfico. São as únicas mesmo bem feitas! Na
realidade, não eram revistas portuguesas: O Mundo Gráfico era americana e A
Guerra Ilustrada uma tradução do original inglês. Ambas muito populares, tinham
excelente qualidade gráfica. O meu amigo rematou: Metade são nossos, metade são
dos nazis! Estranho país este. Mas a tua Carminho que cante obrigado, Portugal,
ela que vá cantando...
Embora a censura do regime
vigiasse a imprensa, a divisão de opiniões reflectia o estado do país. Em 1941,
Portugal estava rachado ao meio nas suas simpatias. Famílias, povo, imprensa,
círculos do poder, dividiam-se entre o partido anglófilo e o partido germanófilo,
ambos em luta pela alma e pela simpatia dos portugueses. Continuámos a andar e
passámos em frente do Hotel Avenida Palace. Michael não olhou para o edifício,
mas encostou-se a mim, baixou a voz e disse, em tom conspirativo: Há um
corredor secreto que liga o cais dos comboios do Rossio a um dos andares superiores
do hotel. Assim, os alemães conseguem entrar sem terem de passar pelo controlo da
polícia.
Não fazia ideia como ele sabia
tais coisas, e absorvia as histórias, deslumbrado com os seus conhecimentos da
vida secreta lisboeta. Vais agora ao Aviz?, perguntou. Olhei para o relógio.
Eram seis e meia. Ficara de estar às sete no hotel, para me encontrar com
Nubar. É melhor apanhares um táxi, sugeriu Michael. Olhei na direcção do Marquês
de Pombal e observei a Avenida da Liberdade, barulhenta e tumultuosa. Dali até
ao Aviz era um longo caminho. Se fosse a pé não chegaria a horas. E tu?,
perguntei.
Não te preocupes. Tenho a minha
faca nova. Apertámos as mãos, bem-dispostos. Ele perguntou: Já viste a nova
secretária lá da Embaixada, a Rita? Não. Veio com o Ralph. Novo chefe, nova
miúda. Sorri: É gira? Michael deu um sonoro assobio: Gira é pouco. Olho azul,
cabelo loiro, bela poitrine! Bompernasse? Rimos. Do melhor que tenho
visto nos últimos meses, afirmou. Melhor que a belga?
A belga era uma entidade
mitológica para nós. Chamada Stephanie, tínhamo-la conhecido em Agosto de 1940,
à porta da Pastelaria Suíça, atarantada com o calor, à procura de uma pensão.
Passámos uma tarde na esplanada a conversar com ela, enfeitiçados, a olhar para
aquela cara loira, para aquelas pernas enormes, para aqueles peitos volumosos.
Mas, apesar de ambos a termos levado a uma pensão na Alexandre Herculano,
nenhum a tinha conquistado. A belga adquirira assim um estatuto único:
deusa inacessível, corpo divino, mulher belíssima, termo de comparação
permanente, nostalgia de um romance nunca consumado.
Não, disse Michael, fingindo uma
tristeza profunda. Melhor que a belga já não se fabrica. Rimos outra vez.
Reanimado, o meu amigo rematou: Mas a Rita é uma truta! Tenho de a conhecer! Um
dia destes passo por lá só para a ver! Michael aproveitou para me espetar uma
bandarilha no cachaço: Vais tentar ser, uma vez na vida, o primeiro e não o
último da lista?
Definitivamente, o meu caso com
Mary tinha-o incomodado. Continuava a tentar desviar-me dela. Primeiro
Carminho, agora Rita. Encolhi os ombros e dirigi-me para a paragem de táxis. Uns
momentos depois, ouvi-o chamar: Jack! Virei-me. Deparou-se-me o seu olhar
sério, a cara fechada, e uma voz preocupada, que me disse: Cuidado com o
coronel…
O que se passou entre mim e
Carminho? Depois de 54 anos, em frente ao Condes e à paragem onde naquela tarde
de Março apanhei o táxi para o Hotel Aviz, continuo sem resposta para tal
pergunta.
No dia do espectáculo por ela
organizado, Carminho apareceu a meio da tarde com o cabelo cortado curto,
imitando o penteado à refugiada. A moda trazida pelas estrangeiras, depois de
vilipendiada pela alta sociedade lisboeta, era agora imitada pelas raparigas portuguesas.
Estranhei a mudança. A sua cara
bonita, os olhos castanhos tranquilos, a boca fina, o seu pequeno nariz,
ganhavam uma nova luz. Recordo-me bem do alvoroço em que fiquei ao vê-la. Quando,
um ano antes, conhecera Carminho num jantar no Hotel Palácio, sentira-me
atraído pela sua serenidade, a paz que a sua companhia me proporcionava.
Carminho não era daquelas mulheres que enche uma sala. Pelo contrário: era
discreta, tímida, escondia-se de qualquer tipo de protagonismo e falava pouco.
Ao mudar o penteado, parecia
querer mudar de personalidade. Ficava mais bonita e desejável, mas perdia o
recato e isso assustou-me. Lembro-me de que senti um forte desejo e que a
tentei beijar. Naquele dia, ainda estava convencido de que sentia amor por ela.
Não, aqui não, vem aí o meu pai. Carminho afastou-se, recusando o meu beijo,
embora no olhar brilhante revelasse contentamento com a minha manifestação. O
general na reserva Joaquim Silva entrou na sala. Os seus cabelos, completamente
brancos, estavam penteados para trás, luzidios devido à brilhantina. A testa
alta recuperava-lhe o porte imponente que se via nas fotografias dos seus tempos
de juventude, espalhadas pela casa. Vinha vestido com a sua farda de gala, impecavelmente
engomada. Era um homem vaidoso, sempre bem barbeado e perfumado». In
Domingos Amaral, Enquanto Salazar Dormia, 2006, Casa das Letras, 2013, ISBN
978-972-462-174-6.
Cortesia da CasadasLetras/JDACT
JDACT, Domingos Amaral, Lisboa, Literatura, II Guerra Mundial, Conhecimento,