sábado, 13 de janeiro de 2024

Enquanto Salazar Dormia. Domingos Amaral. «Carminho apareceu a meio da tarde com o cabelo cortado curto, imitando o penteado à refugiada. (…) Estranhei a mudança. A sua cara bonita, os olhos castanhos tranquilos, a boca fina, o seu pequeno nariz, ganhavam uma nova luz. Recordo-me bem do alvoroço em que fiquei ao vê-la»

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Mary

«Michael revelou-se desapontado: É pouco. Depois descobriu um pequeno motivo de alegria: Olha, o Novidades! Vá lá, pelo menos temos o Cerejeira e a Igreja. Cristo está connosco. Para o animar, enumerei mais alguns títulos que me pareciam pro-ingleses: O Diário de Lisboa, o República, e os dois do Porto, o Primeiro de Janeiro e o Comércio do Porto. E as revistas... Sim, confirmou Michael. A Guerra Ilustrada e O Mundo Gráfico. São as únicas mesmo bem feitas! Na realidade, não eram revistas portuguesas: O Mundo Gráfico era americana e A Guerra Ilustrada uma tradução do original inglês. Ambas muito populares, tinham excelente qualidade gráfica. O meu amigo rematou: Metade são nossos, metade são dos nazis! Estranho país este. Mas a tua Carminho que cante obrigado, Portugal, ela que vá cantando...

Embora a censura do regime vigiasse a imprensa, a divisão de opiniões reflectia o estado do país. Em 1941, Portugal estava rachado ao meio nas suas simpatias. Famílias, povo, imprensa, círculos do poder, dividiam-se entre o partido anglófilo e o partido germanófilo, ambos em luta pela alma e pela simpatia dos portugueses. Continuámos a andar e passámos em frente do Hotel Avenida Palace. Michael não olhou para o edifício, mas encostou-se a mim, baixou a voz e disse, em tom conspirativo: Há um corredor secreto que liga o cais dos comboios do Rossio a um dos andares superiores do hotel. Assim, os alemães conseguem entrar sem terem de passar pelo controlo da polícia.

Não fazia ideia como ele sabia tais coisas, e absorvia as histórias, deslumbrado com os seus conhecimentos da vida secreta lisboeta. Vais agora ao Aviz?, perguntou. Olhei para o relógio. Eram seis e meia. Ficara de estar às sete no hotel, para me encontrar com Nubar. É melhor apanhares um táxi, sugeriu Michael. Olhei na direcção do Marquês de Pombal e observei a Avenida da Liberdade, barulhenta e tumultuosa. Dali até ao Aviz era um longo caminho. Se fosse a pé não chegaria a horas. E tu?, perguntei.

Não te preocupes. Tenho a minha faca nova. Apertámos as mãos, bem-dispostos. Ele perguntou: Já viste a nova secretária lá da Embaixada, a Rita? Não. Veio com o Ralph. Novo chefe, nova miúda. Sorri: É gira? Michael deu um sonoro assobio: Gira é pouco. Olho azul, cabelo loiro, bela poitrine! Bompernasse? Rimos. Do melhor que tenho visto nos últimos meses, afirmou. Melhor que a belga?

A belga era uma entidade mitológica para nós. Chamada Stephanie, tínhamo-la conhecido em Agosto de 1940, à porta da Pastelaria Suíça, atarantada com o calor, à procura de uma pensão. Passámos uma tarde na esplanada a conversar com ela, enfeitiçados, a olhar para aquela cara loira, para aquelas pernas enormes, para aqueles peitos volumosos. Mas, apesar de ambos a termos levado a uma pensão na Alexandre Herculano, nenhum a tinha conquistado. A belga adquirira assim um estatuto único: deusa inacessível, corpo divino, mulher belíssima, termo de comparação permanente, nostalgia de um romance nunca consumado.

Não, disse Michael, fingindo uma tristeza profunda. Melhor que a belga já não se fabrica. Rimos outra vez. Reanimado, o meu amigo rematou: Mas a Rita é uma truta! Tenho de a conhecer! Um dia destes passo por lá só para a ver! Michael aproveitou para me espetar uma bandarilha no cachaço: Vais tentar ser, uma vez na vida, o primeiro e não o último da lista?

Definitivamente, o meu caso com Mary tinha-o incomodado. Continuava a tentar desviar-me dela. Primeiro Carminho, agora Rita. Encolhi os ombros e dirigi-me para a paragem de táxis. Uns momentos depois, ouvi-o chamar: Jack! Virei-me. Deparou-se-me o seu olhar sério, a cara fechada, e uma voz preocupada, que me disse: Cuidado com o coronel…

O que se passou entre mim e Carminho? Depois de 54 anos, em frente ao Condes e à paragem onde naquela tarde de Março apanhei o táxi para o Hotel Aviz, continuo sem resposta para tal pergunta.

No dia do espectáculo por ela organizado, Carminho apareceu a meio da tarde com o cabelo cortado curto, imitando o penteado à refugiada. A moda trazida pelas estrangeiras, depois de vilipendiada pela alta sociedade lisboeta, era agora imitada pelas raparigas portuguesas.

Estranhei a mudança. A sua cara bonita, os olhos castanhos tranquilos, a boca fina, o seu pequeno nariz, ganhavam uma nova luz. Recordo-me bem do alvoroço em que fiquei ao vê-la. Quando, um ano antes, conhecera Carminho num jantar no Hotel Palácio, sentira-me atraído pela sua serenidade, a paz que a sua companhia me proporcionava. Carminho não era daquelas mulheres que enche uma sala. Pelo contrário: era discreta, tímida, escondia-se de qualquer tipo de protagonismo e falava pouco.

Ao mudar o penteado, parecia querer mudar de personalidade. Ficava mais bonita e desejável, mas perdia o recato e isso assustou-me. Lembro-me de que senti um forte desejo e que a tentei beijar. Naquele dia, ainda estava convencido de que sentia amor por ela. Não, aqui não, vem aí o meu pai. Carminho afastou-se, recusando o meu beijo, embora no olhar brilhante revelasse contentamento com a minha manifestação. O general na reserva Joaquim Silva entrou na sala. Os seus cabelos, completamente brancos, estavam penteados para trás, luzidios devido à brilhantina. A testa alta recuperava-lhe o porte imponente que se via nas fotografias dos seus tempos de juventude, espalhadas pela casa. Vinha vestido com a sua farda de gala, impecavelmente engomada. Era um homem vaidoso, sempre bem barbeado e perfumado». In Domingos Amaral, Enquanto Salazar Dormia, 2006, Casa das Letras, 2013, ISBN 978-972-462-174-6.

Cortesia da CasadasLetras/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, Lisboa, Literatura, II Guerra Mundial, Conhecimento,