quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

Assim Começa o Mal. Javier Marías. «… o preâmbulo de um abandono amoroso que você acabará consumando, mas que ainda não consegue sequer imaginar: essas ondas de frieza e irritação e saciedade dirigidas a um ser…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Acostume-se a me ver aqui, porque daqui não se pode ir mais para baixo, o que é uma vantagem na hora de tomar decisões, deveríamos tomá-las a partir das piores hipóteses, se é que não do desespero e sua acompanhante habitual, a vileza, assim não amoleceríamos nem reconheceríamos um equívoco.

Não se preocupe e sente-se, vou ditar-te uma coisa ou duas. E deixe de lado de uma vez por todas o dom, não é a primeira vez que digo. Eduardo, imitou minha voz, e era um grande imitador, me envelhece e me soa a Galdós, que não suporto com duas excepções, e isso numa obra tão abusiva o converte num déspota. Vamos, anote. Vai ditar-me daí? Daí de baixo? Sim, daqui, qual o problema? Por acaso minha voz não chega até você? Não me diga que tenho de te levar ao otorrino, seria um péssimo indício na sua idade. Quantos anos acha que tem? Quinze?. Também era dado a gozações e ao exagero.

Vinte e três. Sim, claro que sua voz chega até mim. É potente e viril, como o senhor sabe. Eu não as iniciava apenas: toda a vez que Muriel me fazia uma piada, eu a devolvia, ou pelo menos lhe respondia no mesmo tom de troça. Tornou a sorrir sem querer, mais com o olho do que com os lábios. Mas não verei o seu rosto se eu me sentar no meu lugar. Ficarei de costas para o senhor, uma descortesia, não? Eu costumava ocupar uma poltrona em frente à dele quando despachávamos, com sua mesa de trabalho setecentista de permeio, e ele estava estendido perto do limiar do salão, mais além dessa minha poltrona.

Pois vire a poltrona, coloque-a voltada para mim. Grande coisa, que problema! Nem se estivesse aparafusada no chão. Ele tinha razão, assim fiz. Agora ele ficava literalmente a meus pés, em sentido perpendicular a eles; como composição era excêntrica, o chefe horizontal no chão e o secretário, ou o que quer que eu fosse, a um palmo de lhe dar um pontapé ao menor movimento involuntário e brusco ou mal medido de suas pernas, nas costelas ou nos quadris. Me preparei para escrever na minha caderneta (depois passava as cartas numa máquina velha que ele me tinha emprestado, ainda funcionava bem, e lhe dava para rever e assinar).

Mas Muriel não começou de imediato. Sua expressão de pouco antes, mais para o afável, dissimuladamente risonha, havia sido substituída por uma de abstração ou de elucidação, ou por uma dessas coisas pesadas que você vai adiando porque não deseja enfrentá-las nem mergulhar nelas e que, portanto, sempre voltam, recorrentes e, a cada investida, são mais profundas por não terem desaparecido durante o período em que você as manteve sob controle ou afastadas do pensamento, mas porque, por assim dizer, cresceram em ausência e não pararam de espreitar o ânimo, sub-reptícia ou subterraneamente, como se fossem o preâmbulo de um abandono amoroso que você acabará consumando, mas que ainda não consegue sequer imaginar: essas ondas de frieza e irritação e saciedade dirigidas a um ser muito querido que vêm, se entretêm um pouco e se vão, e toda vez que se vão você deseja crer que sua visita foi uma fantasmagoria, produto do mal-estar consigo mesmo, ou de um descontentamento geral, ou mesmo das contrariedades ou do calor, e que não voltarão mais.

Só para descobrir na próxima vez que cada nova onda é mais pegajosa e traz consigo uma duração maior e envenena e abruma o espírito e o faz duvidar e se amaldiçoar um pouco mais. Demora a se perfilar esse sentimento de desafeição, e ainda mais a se formular na mente (acho que não a aguento mais, vou fechar a porta para ela, tem de ser assim), e quando a consciência por fim o assume, ainda lhe resta um bom caminho a percorrer antes de ser verbalizado e exposto à pessoa que sofrerá o abandono e que não suspeita dele nem o prefigura, porque tampouco nós, os abandonadores, o fazemos, enganosos, covardes, dilatórios, morosos, pretendemos coisas impossíveis: eludir a culpa, evitar o dano, e a quem caberá enlanguescer incredulamente por ele e quem sabe morrer em sua palidez». In Javier Marías, Assim Começa o Mal, 2015, Afaguara, ISBN 978-989-665-008-7.

Cortesia de Alfaguara/JDACT

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