O Breviário
«Não
tínhamos pressa. Vimos os marinheiros começarem a bulir em caixotes e sacas que
traziam de Veneza e nós já sabíamos o que aquilo queria dizer: detença no porto
para se proceder à venda de mercadoria. Saíram também connosco dois fidalgos
gregos que se tornaram nossos particulares amigos e ainda o bispo maronita.
Frei Jorge conhecia a terra e a gente dela. Sabia falar a língua grega.
Foi-nos, por isso, de grande utilidade e nós a ele, por nosso lado, pois levava
muito fraca e miserável a sua bolsa. Em pessoa nos buscava tudo o que havíamos
mister, sem se preocupar com a sua alta dignidade, mas não é coisa de
estranhar, porque naquelas partes quase todos os bispos são pobres e vivem
assim. Tinha uma zanga mortal aos Gregos.
Se
me fosse possível, dizia muitas vezes, ter dentro de mim todos os gregos do
mundo, consentiria de boa mente que me matassem de um golpe. Porquê, frei
Jorge? Porque comigo morreriam os Gregos. A sua contumácia ia ao ponto de,
tendo havia anos morrido sua mãe e sido enterrada em igreja de gregos, jamais
lhe lançara água benta..., para não ter de entrar nessa igreja!, exclamava de
dentes cerrados. Isto ouvíamos nós dele, enquanto fazíamos compras na cidade,
depois de os gregos se terem despedido em companhia de parentes e conhecidos
que, com muita festa, os vieram receber. Tais são, por nossos pecados, nestes
calamitosos tempos, quase todos os cristãos de Oriente, criados e alimentados
no ódio cego uns aos outros.
O
meu espírito começava a acalmar e a minha tristeza ia-se esbatendo com os dias
e com ver novas terras, aquela cidade tão antiga, aquela gente tão diferente na
maneira e nos trajes e em tudo mais, os edifícios sumptuosos das duas
catedrais, uma que faz à latina e outra à grega. Não oferecem curiosidade as
casas de habitação, mas há por ali sinais de grandeza e tempos prósperos:
vêem-se muitas antiguidades, como casas subterrâneas lavradas na pedra viva,
com câmaras e estâncias de formas variadas, feitas todas de pedra de uma só
peça. Em extremo desleixadas e destruídas, causam ainda assim admiração e
espanto, mostrando a toda a pessoa curiosa como devem ter sido Notáveis as
ruínas do antigo templo edificado em honra de Vénus Páfia: espalhados pelo chão
inçado de ervas vêem-se grandes pedaços de colunas marmóreas e outras pedras
raras como jaspes verdes, vermelhos e serpentinos, de grande fineza e lavrados
com muita arte em diversos estilos, coríntio, dórico, romano...
Entre
outras coisas, uma extraordinária abóbada que não nos souberam dizer para que
tinha servido. São muito rústicos e ignorantes os gregos destas partes, e sem
letras: somente sabem o grego vulgar de que fazem uso e, se alguma pessoa mais
grada pretende conhecer o grego literário e gramatical, tem de ir aprendê-lo às
escolas de Itália e de França, sobretudo a Veneza. Não há em toda a Grécia uma
escola de grego, salvo em Atenas, onde o grão-turco, por memória do que foi e
por mostrar sua grandeza, sustenta um estudo. É esta uma das razões por que se
perderam muitos documentos escritos, sagrados e profanos, e a memória de muitas
antiguidades da velha Hélade.
Continuando
o tempo a mostrar-se-nos contrário e tudo sendo sinais de que a nossa detença
ali seria de espaço, um dia nos levaram a visitar, légua e meia de Pafo, para
norte, um pequeno templo, também dedicado a Vénus Páfia, ainda inteiro. Junto dele
uma muito curiosa fonte de finíssimo mármore, que presentemente se chama Fonte
dos Amores. Em volta ruínas de edifícios que aparentam grande antiguidade.
Contam-nos que havia muito já que o culto de Vénus tinha acabado, e ainda o
lugar continuava habitado por gente sensual e desonesta, e aquela fonte era
objecto de muitas superstições e embaimentos: as mulheres estéreis recorriam a
ela a ver se emprenhavam; as prenhes a ela vinham para terem um bom parto; as
solteiras para atraírem os homens; as viúvas para de novo arranjarem marido,
para tudo aquela água tinha virtude.
Melhor que estas fábulas
patranhosas, histórias frívolas, apócrifas e sobremaneira gostosas aos ouvidos,
eram os ornamentos naturais da cidade e seu termo. Hortas viçosas, verdes
canaviais de açúcar e pomares ubérrimos com toda a espécie de arvoredo
frutífero, onde, além da fruta de espinho que nesta altura está em sua
perfeição, se pode apreciar a abundância de tâmaras, grandes, formosas e
extremamente gostosas, muito inhame e os palmares de musas que naqueles sítios
e em todas as mais partes orientais onde as lá chamam por outro nome, o depomumparadisi. São umas
árvores da altura de uma lança, se tanto, e de folhas tão grandes que duas
podem cobrir um homem. Dão uns cachos enormes e compridos, com quinze ou vinte
pomos ou mais, que são de muito suave doçura, a carne deles como marmelada
fresca e mole, a modo de figos mas a massa mais tesa». In Fernando Campos, A Casa do Pó,
Difel, 1986, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.
Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT
JDACT, Fernando Campos, Literatura, A Arte da Escrita, História,