A Ponte dos Suspiros. Os Sinais do Corpo
«Para
os que levantaram cabelo, o confisco, o cárcere, o patíbulo, o homizio... Vós
também estais homiziado. E falais assim? Medito em voz alta. Não vos ofendais.
Não nos resta outro caminho... A unificação ibérica? Que somos nós? África,
Ásia, as Índias são pasto de estrangeiros. Portugal é uma região, uma província
de Espanha e, quando toda a Europa, sob o domínio de Filipe...
Não
estais bom da cabeça. ... quando toda a Europa for unida... Não é essa a
realidade, não é isso que se passa. Por toda a parte há mas é movimentos que se
reclamam a identidade própria, a libertação, a independência. Olhai a
Catalunha, a Vascóvia, a Irlanda, a Escócia, os Países Baixos, a Grécia... Portugal
não morreu, não morrerá. Por mais uniões que se façam, existem fundas e surdas
correntes de afirmação de identidade... Não somos nós, os que aqui estamos, disso exemplo?, ponderou o
cónego Rodrigues. Nós, menos ele, levantou-se exaltado Pimentel, que até ali se
mantivera calado. E apontava Nuno Costa: Aquilo cheira a fala de renegado.
Renegado,
eu? Não segui eu a parte de Dom António, que Deus tenha? - Dais Portugal como
morto. Esqueceis-vos de que el-rei está vivo.
Falta
provar que é el-rei... Olhai, olhai, amigos!, vinham entrando frei Crisóstomo e
Brito Almeida, o riso aberto, e logo atrás Pantaleão Pessoa. Alvíssaras! Que
aconteceu?, perguntou frei Lourenço. Postos ao corrente da publicação do breve
pontifício, não se cansavam de o passar de olhos a olhos, com os corações açodados
e exclamações de júbilo. Vedes?, mostrava Pimentel o documento a Nuno Costa,
que se mantivera um pouco arredado.
Portugal
não morreu!, disse Lourenço com a voz embargada e os olhos húmidos. Morreu,
respondeu entre dentes Nuno Costa, pegando no breve. Leu-o em silêncio. Depois,
levantando os olhos, disse: Inacreditável! Inacreditável quê? Dir-se-ia uma
contrafacção... Como vos chegou isto às mãos? Lá estais vós com as vossas
dúvidas, arrancou-lhe Pessoa das mãos o papel.
Formavam
grupo a comentar a boa notícia, afastava-se Nuno Costa dos amigos... Dançam-te
nos olhos da memória tantas imagens de invejas recalcadas durante a vida, cacos
de episódios vividos, desejos e ambições inconfessas, ambiguidades elaboradas,
mentira pronta, rancores abafados, crimes meditados que a cobardia arredara...
Borra da alma, negrume, náusea... É isso, Nuno Costa. Que outro caminho te resta
senão o da traição? Diante destes, veste a capa da prudência. Ainda há pouco te
expuseste sem indústria... Dissimulação é a tua arma. Não afies garras, não
arreganhes dentes, não arrepies pêlo. O teu coração são as tripas.
Insensível... na mostra. Guarda-te para as horas mortas. Vingança de teres
sempre rastejado, ciúmes das asas dos outros...
Chegou,
enfim, vindo de Roma, na qualidade de embaixador de Sua Santidade e de príncipe
português, o senhor Dom Cristóvão Portugal. Logo ao entrar da porta dos paços
de Dom João Castro, era ver-lhe aquela cabeça a emergir da gola de folhos rendados,
o semblante iluminado por um leve sorriso de bonomia interior que lhe
transparecia da expressão da boca e do olhar. Um jovem cavaleiro ainda não
chegado aos trinta anos, estatura média no jubão de guarnições lavradas, a
meia-calça ajustada na perna magra... Cabelo encaracolado, testa alta, olhos claros,
nariz comprido ondeado a terminar em bico, lábios finos bem recortados, bigode
encrespado com guias reviradas para cima, sob o lábio inferior a breve mosca,
pêra espetada no queixo.
Príncipe!,
do alto da sua estatura esguia e barbas venerandas a escorrerem adelgaçadas até
ao peito, acolhia-o paternal de braços abertos Dom João Castro. Permitiam-lho os
cinquenta anos e a amizade fraternal que o unira ao pai, o rei Dom António». In
Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN
978-972-290-806-1.
Cortesia de Difel/JDACT
JDACT, Fernando Campos, História, Literatura,