terça-feira, 30 de janeiro de 2024

No 31. A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «… barbas venerandas a escorrerem adelgaçadas até ao peito, acolhia-o paternal de braços abertos Dom João Castro. Permitiam-lho os cinquenta anos e a amizade fraternal que o unira ao pai, o rei Dom António»

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A Ponte dos Suspiros. Os Sinais do Corpo

«Para os que levantaram cabelo, o confisco, o cárcere, o patíbulo, o homizio... Vós também estais homiziado. E falais assim? Medito em voz alta. Não vos ofendais. Não nos resta outro caminho... A unificação ibérica? Que somos nós? África, Ásia, as Índias são pasto de estrangeiros. Portugal é uma região, uma província de Espanha e, quando toda a Europa, sob o domínio de Filipe...

Não estais bom da cabeça. ... quando toda a Europa for unida... Não é essa a realidade, não é isso que se passa. Por toda a parte há mas é movimentos que se reclamam a identidade própria, a libertação, a independência. Olhai a Catalunha, a Vascóvia, a Irlanda, a Escócia, os Países Baixos, a Grécia... Portugal não morreu, não morrerá. Por mais uniões que se façam, existem fundas e surdas correntes de afirmação de identidade... Não somos nós, os  que aqui estamos, disso exemplo?, ponderou o cónego Rodrigues. Nós, menos ele, levantou-se exaltado Pimentel, que até ali se mantivera calado. E apontava Nuno Costa: Aquilo cheira a fala de renegado.

Renegado, eu? Não segui eu a parte de Dom António, que Deus tenha? - Dais Portugal como morto. Esqueceis-vos de que el-rei está vivo.

Falta provar que é el-rei... Olhai, olhai, amigos!, vinham entrando frei Crisóstomo e Brito Almeida, o riso aberto, e logo atrás Pantaleão Pessoa. Alvíssaras! Que aconteceu?, perguntou frei Lourenço. Postos ao corrente da publicação do breve pontifício, não se cansavam de o passar de olhos a olhos, com os corações açodados e exclamações de júbilo. Vedes?, mostrava Pimentel o documento a Nuno Costa, que se mantivera um pouco arredado.

Portugal não morreu!, disse Lourenço com a voz embargada e os olhos húmidos. Morreu, respondeu entre dentes Nuno Costa, pegando no breve. Leu-o em silêncio. Depois, levantando os olhos, disse: Inacreditável! Inacreditável quê? Dir-se-ia uma contrafacção... Como vos chegou isto às mãos? Lá estais vós com as vossas dúvidas, arrancou-lhe Pessoa das mãos o papel.

Formavam grupo a comentar a boa notícia, afastava-se Nuno Costa dos amigos... Dançam-te nos olhos da memória tantas imagens de invejas recalcadas durante a vida, cacos de episódios vividos, desejos e ambições inconfessas, ambiguidades elaboradas, mentira pronta, rancores abafados, crimes meditados que a cobardia arredara... Borra da alma, negrume, náusea... É isso, Nuno Costa. Que outro caminho te resta senão o da traição? Diante destes, veste a capa da prudência. Ainda há pouco te expuseste sem indústria... Dissimulação é a tua arma. Não afies garras, não arreganhes dentes, não arrepies pêlo. O teu coração são as tripas. Insensível... na mostra. Guarda-te para as horas mortas. Vingança de teres sempre rastejado, ciúmes das asas dos outros...

Chegou, enfim, vindo de Roma, na qualidade de embaixador de Sua Santidade e de príncipe português, o senhor Dom Cristóvão Portugal. Logo ao entrar da porta dos paços de Dom João Castro, era ver-lhe aquela cabeça a emergir da gola de folhos rendados, o semblante iluminado por um leve sorriso de bonomia interior que lhe transparecia da expressão da boca e do olhar. Um jovem cavaleiro ainda não chegado aos trinta anos, estatura média no jubão de guarnições lavradas, a meia-calça ajustada na perna magra... Cabelo encaracolado, testa alta, olhos claros, nariz comprido ondeado a terminar em bico, lábios finos bem recortados, bigode encrespado com guias reviradas para cima, sob o lábio inferior a breve mosca, pêra espetada no queixo.

Príncipe!, do alto da sua estatura esguia e barbas venerandas a escorrerem adelgaçadas até ao peito, acolhia-o paternal de braços abertos Dom João Castro. Permitiam-lho os cinquenta anos e a amizade fraternal que o unira ao pai, o rei Dom António». In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

Cortesia de Difel/JDACT

JDACT, Fernando Campos, História, Literatura,