Que o Medo os Retraia do delito (1492-1594)
«Todo herege e cismático há
de ser lançado ao fogo eterno, na companhia do Diabo e dos seus anjos, a não
ser que, antes da morte, seja incorporado e reintegrado à Igreja, dispunha o Directorium inquisitorum.
A presença judaica na Península Ibérica
remonta à noite dos tempos. Entre os diversos mitos de origem, fala-se de um
neto do bíblico Noé, de nome Tubal, que teria chegado ao lugar dois séculos
após o presumido dilúvio universal, para então povoar o território a partir da
fundação da cidade de Setúbal. Mas há relatos históricos que creditam o
advento do judaísmo aos mercadores embarcados nos navios fenícios que alcançaram
a região por volta de 1200 a.C., na escala de rotas comerciais rumo às ilhas da
Grã-Bretanha. Outras narrativas míticas atribuem o momento da chegada em torno
do ano 900 a.C., a bordo das embarcações de longo curso construídas pelo rei
Salomão, supostamente originárias do porto de Társis, cidade aludida no Antigo
Testamento, da qual se desconhece a localização exacta.
Existem também versões que dão conta de os
hebreus lusitanos serem os descendentes de alguma das dez tribos de Israel
dispersas e perdidas para sempre quando da invasão dos assírios à cidade de
Samaria, em 722 a.C. Em outra variante, poderiam vir a ser os sucedâneos da
grande diáspora provocada pela primeira destruição de Jerusalém pelo imperador
babilónico Nabucodonosor II, em 587 a.C. Ou, ainda, procedentes
da segunda destruição, em 70 a.C., depois da ocupação da cidade pelas tropas do
comandante Tito, filho do imperador romano Vespasiano, a quem aquele sucederia
no trono.
Malgrado tantas controvérsias e
especulações, é certo afirmar que os judeus já estavam instalados na Península
desde o período no qual esta viveu sob o domínio do Império Romano e era
conhecida pelo nome comum de Hispânia. Achados arqueológicos mais remotos
indicam a ocorrência de lápides funerárias judaicas na actual Espanha datadas
dos séculos II e III d.C. Na
Lusitânia, província a oeste, no território que é hoje Portugal, foi
desenterrada das ruínas de uma antiga vila romana, nas imediações da cidade de
Silves, no Algarve, uma plaqueta de
mármore, provavelmente do final do século IV d.C.,
onde se lê, em hebraico, o nome próprio Yehiel. Mais
categórica ainda é a chamada Pedra de Mértola, fragmento de uma
inscrição tumular encontrada na região do Alentejo e no qual se pode observar o
desenho de uma menorá, o candelabro judeu de sete braços, símbolo máximo do
judaísmo na Antiguidade, antes de a estrela de David ser adoptada como tal, em
tempos modernos, encimado por caracteres e números que indicam uma datação exacta
do calendário latino, equivalente ao ano de 482 d.C.
Os vestígios do antissemitismo na
Península são tão antigos quanto tais artefactos. No início do século IV, pouco
antes de o cristianismo vir a se tornar a religião oficial do Império Romano,
um total de dezanove bispos católicos da antiga Hispânia já se reunia no
Concílio de Elvira para firmar 81 cânones, a serem seguidos como preceitos
obrigatórios da vida devota. Além de legislar sobre temas como a castidade e o
celibato clericais, o documento disciplinava a coexistência, ou melhor, o
isolamento, entre cristãos e judeus. Um judeu ficava proibido de casar e de
manter relações sexuais com uma cristã. O mesmo valia para uma judia em relação
a um cristão. O indivíduo de uma religião não poderia sequer comer à mesma mesa
com o adepto da outra.
Ao longo dos séculos, a política ibérica
em relação aos judeus alternou instantes de tolerância com momentos de
perseguição extrema. Com a derrocada do Império Romano do Ocidente e a ocupação
da Península pelos bárbaros visigodos, povo de origem germânica que a dominou
por três séculos, entre 418 e 711 d.C., os judeus locais
conseguiram viver em relativa tranquilidade. Pelo menos até que o reino
visigótico também aderisse ao cristianismo e o rei Sisebuto ensaiasse, em 613
d.C.,
a primeira tentativa de conversão em massa, punindo os mais
obstinados com o degredo e o correctivo de cem chibatadas. Centenas foram
deportados, outros tantos morreram espancados, mas a maior parte passou a
praticar o judaísmo em segredo.
A instabilidade interna e a crescente
ameaça de ocupação dos territórios ibéricos por parte dos muçulmanos, a partir
de cidades situadas no Norte da África, desestabilizaram o poderio visigodo.
Nos estertores do reinado cristão de ascendência germânica, sucessivos
concílios realizados em Toledo elegeram os judeus como bodes expiatórios,
acusando-os de conspirar a favor da entrada dos islâmicos na Península. A cada
conclave da Igreja, a intolerância mostrava-se mais aguda. De início,
determinou-se que os filhos de criptojudeus deveriam ser retirados dos pais e
entregues a um mosteiro. Em seguida, deliberou-se que os falsos conversos
receberiam como castigo a morte por apedrejamento. Por fim, decidiu-se que os
judeus renitentes deveriam ser conservados vivos, mas mantidos como escravos de
senhores cristãos». In Lira Neto, Arrancados da Terra, Penguin Random, chancela Objectiva,
2021, ISBN 978-989-784-257-3.
Cortesia de PenguinRandom/Objectiva/JDACT
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