domingo, 14 de janeiro de 2024

Arrancados da Terra. Lira Neto. «Os vestígios do antissemitismo na Península são tão antigos quanto tais artefactos. No início do século IV, pouco antes de o cristianismo vir a se tornar a religião oficial do Império Romano, um total de dezanove bispos católicos da antiga Hispânia já se reunia no Concílio de Elvira…»

jdact

Que o Medo os Retraia do delito (1492-1594)

«Todo herege e cismático há de ser lançado ao fogo eterno, na companhia do Diabo e dos seus anjos, a não ser que, antes da morte, seja incorporado e reintegrado à Igreja, dispunha o Directorium inquisitorum.

A presença judaica na Península Ibérica remonta à noite dos tempos. Entre os diversos mitos de origem, fala-se de um neto do bíblico Noé, de nome Tubal, que teria chegado ao lugar dois séculos após o presumido dilúvio universal, para então povoar o território a partir da fundação da cidade de Setúbal. Mas há relatos históricos que creditam o advento do judaísmo aos mercadores embarcados nos navios fenícios que alcançaram a região por volta de 1200 a.C., na escala de rotas comerciais rumo às ilhas da Grã-Bretanha. Outras narrativas míticas atribuem o momento da chegada em torno do ano 900 a.C., a bordo das embarcações de longo curso construídas pelo rei Salomão, supostamente originárias do porto de Társis, cidade aludida no Antigo Testamento, da qual se desconhece a localização exacta.

Existem também versões que dão conta de os hebreus lusitanos serem os descendentes de alguma das dez tribos de Israel dispersas e perdidas para sempre quando da invasão dos assírios à cidade de Samaria, em 722 a.C. Em outra variante, poderiam vir a ser os sucedâneos da grande diáspora provocada pela primeira destruição de Jerusalém pelo imperador babilónico Nabucodonosor II, em 587 a.C. Ou, ainda, procedentes da segunda destruição, em 70 a.C., depois da ocupação da cidade pelas tropas do comandante Tito, filho do imperador romano Vespasiano, a quem aquele sucederia no trono.

Malgrado tantas controvérsias e especulações, é certo afirmar que os judeus já estavam instalados na Península desde o período no qual esta viveu sob o domínio do Império Romano e era conhecida pelo nome comum de Hispânia. Achados arqueológicos mais remotos indicam a ocorrência de lápides funerárias judaicas na actual Espanha datadas dos séculos II e III d.C. Na Lusitânia, província a oeste, no território que é hoje Portugal, foi desenterrada das ruínas de uma antiga vila romana, nas imediações da cidade de Silves, no Algarve, uma plaqueta de mármore, provavelmente do final do século IV d.C., onde se lê, em hebraico, o nome próprio Yehiel. Mais categórica ainda é a chamada Pedra de Mértola, fragmento de uma inscrição tumular encontrada na região do Alentejo e no qual se pode observar o desenho de uma menorá, o candelabro judeu de sete braços, símbolo máximo do judaísmo na Antiguidade, antes de a estrela de David ser adoptada como tal, em tempos modernos, encimado por caracteres e números que indicam uma datação exacta do calendário latino, equivalente ao ano de 482 d.C.

Os vestígios do antissemitismo na Península são tão antigos quanto tais artefactos. No início do século IV, pouco antes de o cristianismo vir a se tornar a religião oficial do Império Romano, um total de dezanove bispos católicos da antiga Hispânia já se reunia no Concílio de Elvira para firmar 81 cânones, a serem seguidos como preceitos obrigatórios da vida devota. Além de legislar sobre temas como a castidade e o celibato clericais, o documento disciplinava a coexistência, ou melhor, o isolamento, entre cristãos e judeus. Um judeu ficava proibido de casar e de manter relações sexuais com uma cristã. O mesmo valia para uma judia em relação a um cristão. O indivíduo de uma religião não poderia sequer comer à mesma mesa com o adepto da outra.

Ao longo dos séculos, a política ibérica em relação aos judeus alternou instantes de tolerância com momentos de perseguição extrema. Com a derrocada do Império Romano do Ocidente e a ocupação da Península pelos bárbaros visigodos, povo de origem germânica que a dominou por três séculos, entre 418 e 711 d.C., os judeus locais conseguiram viver em relativa tranquilidade. Pelo menos até que o reino visigótico também aderisse ao cristianismo e o rei Sisebuto ensaiasse, em 613 d.C., a primeira tentativa de conversão em massa, punindo os mais obstinados com o degredo e o correctivo de cem chibatadas. Centenas foram deportados, outros tantos morreram espancados, mas a maior parte passou a praticar o judaísmo em segredo.

A instabilidade interna e a crescente ameaça de ocupação dos territórios ibéricos por parte dos muçulmanos, a partir de cidades situadas no Norte da África, desestabilizaram o poderio visigodo. Nos estertores do reinado cristão de ascendência germânica, sucessivos concílios realizados em Toledo elegeram os judeus como bodes expiatórios, acusando-os de conspirar a favor da entrada dos islâmicos na Península. A cada conclave da Igreja, a intolerância mostrava-se mais aguda. De início, determinou-se que os filhos de criptojudeus deveriam ser retirados dos pais e entregues a um mosteiro. Em seguida, deliberou-se que os falsos conversos receberiam como castigo a morte por apedrejamento. Por fim, decidiu-se que os judeus renitentes deveriam ser conservados vivos, mas mantidos como escravos de senhores cristãos». In Lira Neto, Arrancados da Terra, Penguin Random, chancela Objectiva, 2021, ISBN 978-989-784-257-3.


Cortesia de PenguinRandom/Objectiva/JDACT


JDACT, Lira Neto, Literatura, Judeus, Religião, Conhecimento,