quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Eça de Queirós: A Relíquia. Segundo João Medina: Um romance de peregrinação e descoberta. «Foi o Destino? Um génio maligno? Ou o próprio Teodorico, inconscientemente desejoso de fazer a confissão dos seus amores culpados?»

Cortesia de insidethemoon

Eça de Queiroz deu-lhe como sub-título, a célebre frase sobre a nudez forte da verdade – o manto diáfano da fantasia.

A Relíquia começa com a apresentação do narrador e protagonista da história, Teodorico Raposo, que explica o motivo de escrever as suas memórias. Diz-nos que a principal motivação está no facto de que ele como o seu cunhado Crispim, acreditarem que as memórias contém «uma lição lúcida e forte da vida», sendo «merecedoras da imortalidade que só a literatura propicia». A narração concentra-se numa viagem de Teodorico ao Egipto e à Palestina, após uma desilução amorosa.
Ao não utilizar o clássico Guia de ViagemTeodorico conta-nos os casos que provocaram as mudanças significativas na sua vida, nomeadamente a herança que supunha merecer.

Cortesia de quadro-magico
Com a devida vénia a João Medina e à revista A Cidade nº 1, JAN-JUN, 1988, ISSN 0871-1097

A «Relíquia» romance de peregrinação e descoberta.
(Tradução resumida da comunicação «Le Moyen-Orient, Egypte et Palestine, dans La Relique d’Eça de Queiroz, apresentada ao congresso sobre L’altérité dans les Récits de Voyage au Proche Orient, realizado pela Universidade de Haifa, Israel, em Maio de 1987).


Cortesia de João Medina 
«Como tantos outros escritores europeus do séc. XIX também Eça de Queiroz empreende uma viagem ao Oriente. Contava então 24 anos. Visitaria o Egipto, a Palestina, a Alta Síria e o Líbano em companhia do conde de Resende, seu futuro cunhado. Embarcam em Outubro de 1869 com destino ao Egipto, regressando a Lisboa em Janeiro de 1870. O trajecto palestiniano começa naturalmente em Jafa, visitando depois Jerusalém, os lugares santos do cristianismo, os vales do Cedron e Josafá, Gilgal, o Mar Morto, Jericó o Jordão.
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Onde eles atingem importância capital é no grande romance naturalista-histórico A Relíquia, que Philéas Lebesque considerava muito justamente a sua obra mais original (Eça de Queiroz vu de France, in Livro do Centenário de Eça de Queiroz). A publicação deste romance em 1887 suscitou uma viva reacção, assinalada pelo facto de não ter obtido um só voto no concurso da Academia de Ciências de Lisboa, sendo até acusado de verdadeira provocação. O polígrafo romântico Pinheiro Chagas, opositor da geração a que Eça pertenceu e relator do concurso, censurou-lhe então os seus propósitos anticlericais, agnósticos, mesmo ateus. Leitor apaixonado de Flaubert, Renan e Zola, Eça abordava de um modo herético a religião do seu próprio país, ousando aqui pôr em dúvida a divindade de Cristo. De facto este romance continha matéria suficiente para escandalizar os espíritos religiosos e bem pensantes da sociedade burguesa do seu tempo, no fundo tão conformista e devota.

Cortesia do globogloboe
A Relíquia é concebida como um tríptico em que o painel central se liberta afoitamente do presente, mantendo-se todavia fiel aos cânones realistas e à estética naturalista zolaica, isto em fiel obediência ao subtítulo da obra: «Sob a nudez forte da verdade o manto diáfano da fantasia». Este painel central é assim uma outra viagem, desta vez ao longínquo Passado, ao gosto oitocentista de Flaubert ou de Gautier.
Sob a forma livre de um sonho ao arrepio do tempo, o jovem e libertino narrador, Teodorico Raposo, recua na História, embora incapaz de abandonar o seu cigarro, mesmo no Pretório onde Pilatos julga o profeta da Galileia, sempre guiado pela mão erudita do dr. Topsius, historiador da família de Herodes.
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A Jerusalém que Ela visitara, «cidade escura, baixa, humilde» (Eça de Queiroz, Folhas Soltas) era um aglomerado turco de ruelas miseráveis, assente entre muralhas cor de lama, fedendo ao sol, cidade arruinada onde passeiam monges em alpercatas ou judeus de melenas sórdidas. No seu sonho fundem-se Realidade e Fantasia, Imaginação, Realismo, Fantástico e Naturalismo, e Teodorico, turista maganão, céptico e algo enfastiado, sempre a lamentar a falta dos prazeres mundanos da cidade de Salomão, descobre a antiga cidade judaica: ei-lo repentinamente, testemunha inesperada do drama cristão, feito «Teodorico o Evangelista», autor de um novo Evangelho narrado na primeira pessoa… Este pormenor irónico havia aliás irritado os contemporâneos de Eça, nomeadamente o relator do prémio literário de 1887, Pinheiro Chagas, para o qual era perfeitamente herético e perverso fazer reviver a paixão do divino Cristo por intermédio de «um pateta moderno, um devasso reles, vicioso e beato»…

Cortesia de alcanenaonline
A hipocrisia, a luxúria e a duplicidade do jovem burguês materialista que serve de narrador d’A Relíquia fazem deste pândego e cínico o objecto ideal para a descoberta do sentido profundo de uma religião, de que ele era em Lisboa o perfunctório e interesseiro servidor. Este sensual Teodorico Raposo fora alcunhado de «raposão», e Larbaud tem razão ao observar que a este nome se liga a ideia de astúcia.
Os remorsos da sua consciência e, sobretudo, a descoberta da «verdadeira» Paixão do Galileu tinham perturbado a sua vida e os seus desígnios. Antes disso, em Lisboa, Teodorico não passava de um jovem burguês ocioso, que uma tia, ressequida e patologicamente hostil aos sentidos, vigiava com patológicos ciúmes. O seu erotismo encontrava-se assim refreado, amaldiçoado, por causa de um Cristo que ele culparia sempre como responsável da sua vida dupla. Este Deus crucificado surgia-lhe pois como um inimigo da Beleza e dos Sentidos, alguém que não ama senão a Fealdade e o Jejum da carne, um Deus magro, sofredor e coberto de chagas. Durante o seu sonho, eis porém que Teodorico depara com o verdadeiro profeta da Galileia, julgado por Pôncio Pilatos no palácio do Tetrarca Herodes, ao tempo do imperador Tibério, num momento culminante da História.

Cortesia de teatromicaelense
Teodorico sonha e a Verdade surge-lhe na fantasia do sonho em Jerusalém: aí encontrará o verdadeiro Cristo, um homem humano, um justo que prega a igualdade universal e o poder do amor. Em suma, este Jesus ainda vivo não é mais do que um profeta humano, um visionário generoso e idealista nas mãos dos magistrados, dos soldados, dos zelotas fanáticos e dos patrícios.
Este sonho que ocupa um terço da obra, apresenta assim um sentido de revelação e de resgate. Graças a ele Teodorico voltará a Portugal curado da sua vida dúplice, pois por um lado compreendeu o aspecto puramente humano, demasiado humano do crucificado e, por outro lado, porque será ele próprio a arruinar as suas ambições materiais, ao desdobrar, por um lapso verdadeiramente freudiano, a camisa de dormir da Mary sobre o oratório da Titi.

Foi o Destino? Um génio maligno? Ou o próprio Teodorico, inconscientemente desejoso de fazer a confissão dos seus amores culpados?

Seja como for, a tragédia era inevitável e o jovem «raposão» é ignominiosamente expulso pela Titi, que legará os seus milhões à Igreja, a esse ciumento Cristo sempre em agonia.
Da sua peregrinação ele não traz senão a relíquia sensual, a verdade dos sentidos, a confissão, o fim das mentiras. Expulso então da casa da Titi, sem recursos, terá de recomeçar tudo, prosseguindo primeiro na vida da mentira, ao vender as reliquiazinhas santas que dizia ter trazido da Palestina; finalmente, após um dramático diálogo consigo próprio, diante de uma litografia desse Cristo que ele supõe estar na origem de todos os seus males, compreende que havia vivido na falsidade, no materialismo cúpido, no vazio moral». In João Medina, revista A Cidade, nº 1, Janeiro-Junho, 1988.

Cortesia de daliedaqui
Cortesia de João Medina/revista A Cidade/wikipédia/JDACT