terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Fundação Robinson: O Convento de São Francisco de Portalegre. Parte III. A Igreja de S. Francisco de Portalegre. Notas em torno de um programa de musealização. A personagem Rui Sequeira e o seu invulgar desígnio missionário não poderão ser escamoteados, por essa via proporcionando um elo transversal a todo o Espaço Robinson e à cultura da comunidade operária que o gerou e habitou

Foto de Fernando Guerra
Cortesia de publicaçõesdafundaçãorobinson

Com a devida vénia a António Filipe Pimentel, Fundação Robinson, Publicação 10, 2009, p. 26-37, ISSN 1646-7116

«Encontra-se já em fase final o lento e complexo processo de reabilitação da antiga igreja do Convento de São Francisco de Portalegre, que as consequências decorrentes das vicissitudes da extinção das ordens religiosas, em 1834, conduziriam, sucessivamente, à expoliação, desafectação e quase ruína: enquanto, na zona residencial do antigo cenóbio, vingava (entre outras) a semente do que viria a ser a Fábrica Robinson, que nos seus anos de ouro promoveria a transfiguração quase integral do complexo monástico, com a sua fachada funcional e a erecção das altaneiras chaminés que iriam modelar a própria imagem da cidade. Numa clara inversão de valores do que fora a hierarquia original das construções, até que, pesando, por seu turno, sobre a unidade industrial, a usura do tempo, possibilitasse a circunstância azada da devolução à cidade do conjunto edificado assim sedimentado, harmonicamente integrado num Espaço Robinson que promoveria a remissão, por seu intermédio (e em clara leitura de contemporaneidade), desse passado total, monástico e industrial, projectado no futuro de uma nova vocação cultural - onde interagem a arqueologia (medieval e industrial), a museografia, o turismo e a nova criação -, (re)outorgando, por essa via, ao velho núcleo franciscano, a relevância a um tempo afectiva e simbólica que por séculos detivera na vida da cidade.

Século XVIII, finais
Cortesia de publicaçõesdafundaçãorobinson

 Do acerto da decisão política que alicerça e sustenta a recuperação deste património singular testemunha eloquentemente a recente ratificação, pelo próprio Estado Português (em sede parlamentar), da Convenção-Quadro do Conselho da Europa sobre Património Cultural, assinada em Faro em Outubro de 2005. Documento esse que - na senda das convenções entretanto firmadas em Granada (1985, sobre património arquitectónico), La Valetta (1992, sobre património arqueológico) e Florença (2000, sobre a paisagem) - lança as bases de um processo novo de cooperação entre Estados, nesse domínio particular, ao mesmo tempo que estabiliza a noção de que o património cultural é uma realidade dinâmica, na qual se inter-relacionam, não apenas o património histórico e artístico dito material, mas as tradições e a própria criação contemporânea: nessa dimensão assentando as suas bases a própria ideia de património comum europeu, justamente alicerçado na assunção da sua diversidade cultural e na própria noção de pluralismo. E é neste pressuposto teórico - em redor do qual gravita a própria produção conceptual da UNESCO em torno da noção de património imaterial - que assenta, não somente a consciencialização da necessidade de uma conservação integrada dos bens culturais, mas da sua relevância para a própria ideia de cidadania aberta, escorada na crença de que o património comum é o resultante de uma confluência dinâmica entre memória, herança e criação. Postulado esse por sua vez estribado no reconhecimento do direito dos cidadãos de participarem na vida cultural e na convicção de ser o património uma matriz indispensável, seja ao desenvolvimento humano (no plano geral), seja (mais particularmente) a um modelo de desenvolvimento económico e social assente no uso durável dos recursos e na dignidade da pessoa: por sua vez reputados fundamentais para a dinamização de uma cultura de paz, assente no respeito das diferenças e em factores de aproximação, compreensão e dialogo, que o património e a sua preservação (pela própria multidisciplinaridade que requer e pelas pontes transnacionais que por natureza fomenta) têm, justamente, particulares condições para favorecer.

Século XVIII, segunda metade
Cortesia de publicaçõesdafundaçãorobinson

É neste contexto que a decomposição do Espaço Robinson entre núcleos expositivos, criativos e escolares e a correlativa recuperação das estruturas monásticas (protagonizadas pela Igreja de São Francisco, mas também pelo claustro e áreas residenciais adjacentes) e industriais adquire o seu sentido pleno: na própria complementaridade arqueológica que promove entre o tempo longo da sua vocação religiosa e espiritual - que acompanha a sedimentação de Portalegre como vila e depois cidade, entre a Baixa Idade Média e o Barroco - e o tempo novo da Revolução Industrial e da afirmação da urbe como centro fabril. O qual, antes de alimentar-se, no século XIX, dos despojos gerados pela legislação desamortizadora (e de as altivas chaminés da corticeira Robinson rasgarem o céu sobre o perfil da urbe) se plasmara já numa ampla metamorfose da imagem da cidade velha (marcada ainda pela Sé e pelos grandes casarões conventuais), agora modernizada pela presença - em escala singular - de um conceito novo de palácio, assumido como imagem de marca de uma nova classe possidente de aspirações (ou ligações) aristocráticas, com claras relações trasfronteiriças (ao Barroco e Rococó extremenhos) e a novas actividades económicas (com a consequente alteração mental e cultural) em que importa sobremodo atentar.

Popular, séculos XIX-XX
Cortesia de publicaçõesdafundaçãorobinson

A história e as vicissitudes do Convento de São Francisco são, pois, a ponte necessária na ligação deste tempo ao que o antecede, balizado pelas estruturas fortificadas da povoação medieval (também elas ponto de chegada de um passado mais longo, que narra os avatares do estabelecimento aqui de uma comunidade humana), enquanto as da Fábrica Robinson (pela mediação do Espaço Robinson) projectam ambos no presente e no futuro: numa rara e feliz ilustração da confluência dinâmica entre memória, herança e criação atrás referida. Esta a razão porque muito importa não perder de vista o conjunto de intersecções que se consubstanciam em São Francisco de Portalegre, a um tempo no plano histórico e cultural como no artístico e patrimonial, na hora de promover a sua musealização.

Com efeito, primeiro cenóbio a estabelecer-se na povoação medieval, logo na fase inicial da vertiginosa difusão pelo espaço europeu que conheceria a nova congregação fundada, em inícios do século XIII, pelo poverello de Assis (e um dos primeiros dessa observância em todo o Reino); implantado, como de regra, na periferia do agregado urbano e, por essa via, funcionando como pólo dinamizador da sua expansão, o convento, aqui como em toda a parte, converter-se-ia em centro irradiador de uma espiritualidade nova (assente na imitação de Cristo e na imagem da vida cristã que configuram a sua peculiar Regra de Vida) que, seja por intermédio da pregação, seja da sociabilidade própria de mendicantes, seja ainda da difusão do próprio conceito (e modo de vida) das Ordens Terceiras, constitui um poderoso factor de aglutinação social (e, por conseguinte, de coesão da comunidade humana), de particular importância face à grave crise da piedade e da vivência religiosa (de evidentes repercussões sociais e políticas) que assinala a transição entre a Idade Média e a Moderna. E nisso radicará (também por força dos institutos escolares de que foi proprietária) a importância que a piedade e a parenética franciscanas (de teor terrorista e ressonâncias escatológicas, e fortemente centrada na devoção a Cristo e à Sua Paixão) virá a conhecer no período barroco: justamente aquele em que Portalegre se afirma na sua dimensão nova de cidade.

Colunas de retábulo, século XVIII, finais
Cortesia de publicaçõesdafundaçãorobinson

A peculiar modelação plástica de urbe, alcandorada na sua vertente como um sacro monte ou um deserto (onde à cidade de Deus caberia ordenar e remir a cidade dos homens) e de cuja morfologia o complexo cenobita participaria em lugar de relevo, muito particularmente favorece, aliás, uma dimensão semiótica à implantação franciscana na cidade (que é também uma dimensão de poder), que o decurso da História se encarregará de preservar. Antes que uma nova imagem, mais urbana e secular, venha, pouco a pouco, no declinar do século XVIII, estabelecer no desenho um foco de conflito: mas que a Fábrica Robinson (com as suas chaminés, mas também com a sua acção social, não isenta de proselitismo) procurará preservar, em seu beneficio e em alteridade mais ou menos explícita à cidade antiga, enroscada em torno à, e às suas ancestrais cultura, sociabilidade e economia e a um paradigma de unicidade (também religiosa) de natureza pré-capitalista. Por seu turno, a complexa evolução física da Igreja de São Francisco de Portalegre, cuja leitura os actuais trabalhos arqueológicos e de reabilitação devolvem na sua rica integridade, espelha fielmente esta história longa e rica, indispensável à boa compreensão da urbe, na sua afirmação e desenvolvimento.
Fá-lo, com efeito, desde logo na sua oscilante ambiguidade entre os ditames (plásticos) de pobreza originais e a necessidade de propagar' o seu discurso de exaltação divina num contexto cultural mutante, do ponto de vista da sociedade em que se inscreve e no qual, especialmente entre os séculos XVII e XVIII, a cultura do Barroco impõe o teatro e a teatralidade das formas e estruturas como veículo central de comunicação.

Colecção Rui Sequeira (JC)
Cortesia de publicaçõesdafundaçãorobinson

E é  justamente aqui que a musealização da Colecção Rui Sequeira proporciona a ocasião feliz e rara de preencher (cénica e cientificamente) o vazio gerado pela dramática dispersão do património integrado que outrora preencheu esse recinto. Exactamente pela preocupação a um tempo escatológica e redentora que presidiu à tenaz reunião desse impressionante espólio;
  • pelo protagonismo rigorosamente central que o tema da Paixão de Cristo detém sobre a totalidade do acervo;
  • pela possibilidade de, por seu intermédio, ilustrar a ligação dos Franciscanos à vivência peculiar das Ordens Terceiras;
  • de complementar a presença depauperada das estruturas retabulares e (em não menor sentido) de ilustrar a implantação socialmente transversal de uma espiritualidade que, na comunidade humana como no plano puramente estético, se estende dos paradigmas eruditos, às interpretações regionais e mesmo populares e, no plano cronológico, se alonga do declinar da Idade Média aos inícios da centúria finda.
Num quadro onde a personagem Rui Sequeira e o seu invulgar desígnio missionário não poderão ser escamoteados, por essa via (e pela da própria criação contemporânea do programa de musealização) proporcionando um elo transversal a todo o Espaço Robinson e à cultura da comunidade operária que o gerou e habitou». In António Filipe Pimentel A Igreja de S. Francisco de Portalegre. Notas em torno de um programa de musealização.

Continua, numa próxima oportunidade.

Cortesia de Publicações da Fundação Robinson/JDACT