Cortesia de guardiaesdosegredo
Com a devida vénia a António Salvador Marques, publico algumas frases do seu pensamento.
«Este livro não partiu de qualquer pressuposto dogmático, mas de uma redescoberta progressiva e surpreendente que nos conduziu a formular uma teoria sobre a abordagem aos Painéis de S. Vicente de Fora ao longo do séc. XX. Essa teoria admite que a par da veneração de S. Vicente, tranquila e bem comportada, existem duas outras tradições, ambas esotéricas, uma delas inofensiva, feita de geometrias piramidais e proporções de ouro por toda a parte, mas a outra mortífera e com um inconveniente grave: o de corresponder à verdade. A verdade, neste caso, arrasta o fim do grande chapéu negro do infante D. Henrique e da sua sombra protectora, e o desaparecimento da paleta do maior pintor português. Implica ainda a conclusão de que as estátuas estão todas trocadas e valem muito pouco, mas deixa-nos em troca o tesouro da esperança colectiva no futuro.
A coisa pode funcionar assim: alguém escreve um livro ou artigo extremamente inverosímil, mas com a virtude de ser veemente e de fazer pensar. O ponto de vista oficial não aceita o combate, mas fornece algumas lições paternalistas. O furor do ponto de vista excluído aumenta, e suscita o aparecimento de novas heresias, cada uma mais arrevesada que a anterior. O resultado, para o observador atento e com alguma inclinação céptica, é a constatação surpreendente de que os pontos de vista oficiais ou semi-oficiais não são menos absurdos que os outros: têm apenas atrás de si o peso de algumas autoridades, mas autoridades que costumam recusar a discussão do principal documento em nome da Ciência, e alertar com alguma estridência para os «perigos das polémicas», sem todavia os discriminar.
Cortesia de paineis
A pergunta crucial «onde estão os atributos de S. Vicente?» é evitada a todo o transe, e o observador atónito apercebe-se de que mesmo os pontos de vista com maior aceitação conduzem a admitir discretamente a disposição dos painéis na vertical, ou a execução dos seis em tempos bastante diferentes, para evitar a simples e cristalina dúvida sobre a identidade de Sto. Incógnito-Sem-Atributos. As tentativas de discussão tendem, de resto, a centrar-se quase exclusivamente sobre a dupla figura principal, ignorando as outras cinquenta e oito e o mundo que as rodeia, e este foi, desde sempre, o maior obstáculo à compreensão do políptico.
Finalmente, alguém se apercebe da sua verdadeira natureza global, e resolve a charada de uma forma que torna a inevitabilidade da solução evidente aos poucos que acompanham a discussão com reproduções do políptico à frente dos olhos. A grande maioria, no entanto, não se apercebe sequer de que a discussão baseada nos «testemunhos» (as escassas e duvidosas referências históricas) e a discussão baseada no «documento» (as pinturas em si) são radicalmente distintas. Segue-se uma pausa embaraçada por parte dos que começam a compreender, e finalmente um muro de silêncio que pode durar algumas décadas, até que alguém escreva um novo livro inverosímil mas com a virtude de fazer pensar, iniciando um novo ciclo.
Esta pode ser, em linhas gerais, a história da charada das Janelas Verdes, e as razões que nos levam a reconstituí-la desta forma cíclica têm a ver com as nossas próprias memórias de infância. Dizem respeito a cavaleiros verdes, rainhas vermelhas e chapeleiros loucos, capacetes luminosos e coroas de pérolas, que varriam do campo de batalha as hostes do chapéu negro e os seus santos torturados com as suas camas de faquir.
Cortesia de paineis
Como sempre nestes casos de heresia, era um só contra muitos, e mesmo assim a luta era desigual em seu favor, porque o cavaleiro solitário usava armas muito superiores: nem espadas censórias, nem escudos académicos, mas uma simples balança com que pesava o acaso, infundindo o terror e desbaratando o inimigo. Sem orgulhos patrióticos lesados, sem censuras protectoras a defender a colectividade das ameaças indizíveis, a mensagem do Políptico da Esperança teria surgido à luz do dia e a sua pedra verde teria finalmente brilhado sobre este país.
Em vez disso, desapareceram da face da Terra os vestígios desse combate triunfal: não está referido nas enciclopédias, nem nas bibliografias das numerosas publicações sobre o problema dos painéis que consultámos; é desconhecido para os que conhecem os arquivos do Museu Nacional de Arte Antiga, de onde constam as principais polémicas jornalísticas; e não conseguimos sequer localizar qualquer eco na Biblioteca Nacional sob forma de livros ou artigos de revista.
A conclusão de que o combate ocorreu nos jornais diários, durante o fim dos anos cinquenta ou princípio dos sessenta, impõe-se-nos, e a razão por que não procurámos mais é esta: uma nova leitura teria tornado impossível a escrita deste livro, porque nada do que aqui se diz é inédito e, no entanto, tudo está esquecido.
Quantos ciclos se cumpriram para além deste, não o sabemos nós, mas julgamos saber que existe uma tradição política à volta dos painéis e que a ideia da Esperança Futura data pelo menos da geração republicana. Um nome ligado à sua redescoberta moderna no Mosteiro de S. Vicente de Fora, nos anos oitenta do século XIX, é o do pintor Columbano Bordalo Pinheiro que certamente terá reflectido sobre o seu significado e foi autor, décadas mais tarde, do projecto de bandeira da República que a comissão de cinco membros a que ele próprio presidiu veio a adoptar em 1910. O significado esotérico dos painéis é persistente de uma forma difusa que parece ser antiga e dificulta a investigação rigorosa. Não existem muitos registos sobre o que podem ter sido as discussões iniciais acerca do significado da obra, até ao restauro de Luciano Freire em 1909-10, e a primeira exposição pública, feita em 6 de Maio de 1910, coincide de forma apropriada com a tradição que lhe atribuiu um valor político. As coincidências existem, as profecias que se auto-cumprem existem igualmente, e a única coisa que se pode afirmar é que, independentemente das várias tradições, o políptico é o seu melhor documento. A melhor explicação da aura de mistério que o rodeia reside na dificuldade em fazer entender a sua mensagem: seria necessário compreender por completo onde começa e acaba o domínio do contingente para poder provar tudo a todos, e essa é uma empresa sobre-humana. É, no entanto, possível o uso do senso comum para fixar alguns limites ao acaso, e isso é suficiente.
Cortesia de wikipedia
Divide-se em três partes e a mais importante é a primeira, onde se trata dos problemas de composição geral e das anomalias locais que cobrem a superfície dos seis painéis. A nossa própria solução para a charada não é o que mais importa, embora ela se nos afigure como inevitável. O que importa é que qualquer discussão sobre os verdadeiros painéis refira o que lá está, em vez de os trocar pelas versões inócuas ou involuntariamente falseadas que permitem discutir uma pintura de olhos fechados ou na ausência da mesma. Porquê o espaço obscuro do painel dos Frades? Porquê as duas varas que parecem uma? Porquê as mangas desiguais da dama vermelha? Porquê o barrete fendido em duas metades? Porquê a cruz partida ao pescoço do cavaleiro roxo? Porquê tantos disparates concentrados num só políptico? Porquê tantas anomalias sem paralelos iconográficos? Existe mais algum S. Vicente como este? É este o tipo de perguntas que conduz à verdade, e é este o tipo de debate que deve ser retomado, até que a luz se faça.
Posto isto, interessa referir o que o livro não pretende ser, uma vez que não traz nenhuma descoberta documental, nem nenhuma interpretação histórica formulada em novos moldes. Dispensámos, em grande parte, o aparelho de referências e anotações que remete para as fontes, porque o leitor interessado poderá facilmente encontrar as passagens citadas nas edições correntes de Fernão Lopes, Zurara ou Rui de Pina, e partir daí para a leitura do restante, única forma de absorver o espírito de uma época que não é a nossa. Na bibliografia juntámos algumas obras que contribuíram para o nosso próprio entendimento dos acontecimentos históricos que explicam o políptico e, em especial, os relativos ao estado medieval de Borgonha e à duquesa Isabel, filha do rei de Portugal.
A tese, hoje esquecida ou ignorada, que progressivamente redescobrimos para nossa própria surpresa e procuramos ressuscitar conforme podemos, tem passado por diversas tentativas de divulgação, entre as quais artigos esparsos no Diário de Notícias, desde 5 de Maio de 1994 (1), e uma série de conferências em 1995 para o grupo interdisciplinar Principia, orientado por Henrique Leitão. Formulamos o voto de que a sua acessibilidade electrónica possa contribuir para a recuperação das memórias desaparecidas e nos conduza ao conhecimento do elo anterior de uma cadeia cuja extensão ignoramos». In António Salvador Marques.
http://paineis.org/INDICE.htm
(1) Artigos no Diário de Notícias, abordando, directa ou indirectamente, o tema dos Painéis: «O Enigma dos Painéis: A luz nasce do espelho», 5 de Maio de 1994; «Dois votos e dois cintos», 19 de Maio de 1994; «Regresso ao Espelho», 2 de Junho de 1994; «As duas faces do Infante», 1 de Agosto de 1994; «Crónica da reconquista dos Painéis», 9 de Dezembro de 1994; «Crónica da batalha silenciosa», 19 de Dezembro de 1995; «O políptico das duas assinaturas», 9 de Março de 2003.
(1) Artigos no Diário de Notícias, abordando, directa ou indirectamente, o tema dos Painéis: «O Enigma dos Painéis: A luz nasce do espelho», 5 de Maio de 1994; «Dois votos e dois cintos», 19 de Maio de 1994; «Regresso ao Espelho», 2 de Junho de 1994; «As duas faces do Infante», 1 de Agosto de 1994; «Crónica da reconquista dos Painéis», 9 de Dezembro de 1994; «Crónica da batalha silenciosa», 19 de Dezembro de 1995; «O políptico das duas assinaturas», 9 de Março de 2003.
Cortesia de Painéis/JDACT