Cortesia de historiadeportugal
«A essa data, já o pobre rei não podia sair do palácio, que se encontrava cercado por guardas da confiança do príncipe Pedro. Este dominava inteiramente a situação e era informado de tudo o que se passava no paço, incluindo as ordens dadas pelo monarca, mas não cumpridas. Os que, de algum modo tomavam o partido do rei legítimo ou o manifestavam abertamente, apiedados pela sua deplorável posição, sofriam vexames, perseguições e opressões, não raras vezes. Estes eram, porém, um número escasso.
Um dia, o desgraçado soberano, com um raio de consciência das circunstâncias em que se encontrava, concebeu o projecto de fugir para o Alentejo e dali, com topas que se lhe conservavam fiéis, vir depois a Lisboa pôr as coisas nos devidos lugares. Um fidalgo, em quem ele confiava e a quem entregara para o efeito avultada soma, traindo-o miseravelmente, apressou-se a dar conta da trama a D. Pedro.
Agarrando a oportunidade única pelos cabelos, o príncipe deve ter esfregado as mãos de satisfação pelo magnífico ensejo que se lhe proporcionava de levar a termo o seu bem maduro plano de um golpe de Estado. Aquilo era o pretexto para a sua activa actuação e subsequente aniquilamento do irmão e rei. Já antes ele tinha simulado que o Castelo Melhor quisera atentar contra a sua vida, para o aniquilar.
Agora convocou imediatamente o conselho do Estado, constituído por partidários seus, e, com maquiavélico espírito, fez-lhes a sensacional revelação de que o rei Afonso «se preparava passar a Espanha com as suas tropas e oferecer o reino aos castelhanos». É de supor que os do conselho, embora não acreditassem na fantasiosa versão e compreendessem o príncipe no seu ardiloso plano lhe tivessem dado carta branca para agir.
Cortesia de historiadeportugal
D. Pedro, mal a reunião terminara, não perdeu tempo: assaltou o palácio real, à frente dos seus homens, e mandou que o Marquês de Cascais o fosse acordar da sesta. Este palaciano tê-lo-ia censurado por estar sempre a dormir e aconselhou-o a abdicar em seu irmão, o príncipe D. Pedro:
- « -Senhor, a linguagem do Marquês de Cascais era desprovida de grandeza e de respeito, muito rude o que comprovava ter ali acabado o reinado de D. Afonso VI, vós nascestes tolo e o achaque que depois tivestes vos fez mais incapaz; sois doente e cheio de enfermidades...».
O monarca, abandonado por todos, ao reconhecer a traição pegou num bacamarte que sempre conservava junto de si, com o qual bateu violentamente no chão, fazendo ao mesmo tempo grande alarido para que lhe acudissem, clamando em trovões de cólera. A nova correu, célere. De tal maneira que o povinho, alvoroçado, juntando-se em frente do palácio, reclamava em altos gritos que libertassem o seu rei. Valeu, em tal conjuntura, o Juiz do povo, homem da confiança do príncipe, que de uma janela falou aos amotinados, garantindo-lhes, aleivosamente, que não havia desacato na pessoa do soberano e que fora este quem chamara D. Pedro ao paço, a fim de se reconciliarem. Acrescentou que, nessa amigável entrevista, o rei resolvera entregar o governo do reino ao príncipe.
O orador retirou-se da janela onde voltou pouco depois, após um curto conciliábulo com o príncipe, para acrescentar novas mentiras:
- « - Que Sua Majestade, por imposição de consciência, lhe ,pedira que, em seu nome, declarasse ao povo que, de facto, não tinha chegado a consumar o matrimónio com a rainha... e que ela, para que o reino não ficasse sem sucessão, devia tratar de casar-se de novo... ‘estando indicado que o fizesse com o príncipe Pedro, dado o defeito dele, rei...».
Tão categóricas afirmações em nome do monarca fizeram aquietar o povo, que debandou apiedado mas satisfeito por saber da paz entre os dois irmãos, com o que o reino viria a lucrar. Aos seus ouvidos não chegava a gritaria feita pelo infeliz soberano nos inúteis protestos contra a violência de que era vítima.
Nesse mesmo dia, 23 de Novembro de 1667, Afonso VI assinava, ou alguém o fazia abusivamente por si (note-se que nunca foi verificada a autenticidade da assinatura real) a proclamação em que declarava a desistência do trono em favor do irmão». In Américo Faria, Dez Monarcas Infelizes, Livraria Clássica Editora, colecção 10, Lisboa, s/d.
Cortesia de Livraria Clássica Editora/JDACT