sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Umberto Eco. Leituras. Parte XLI: «Explicou-me pacientemente que queria saber quais são os nossos adversários históricos, aqueles que nos matam e que nós matamos. Repeti-lhe que não os temos, que a última guerra fizemo-la há mais de meio século e, para além disso, começando-a com um inimigo e acabando-a com um outro»


Cortesia de soundradio e eujafui

Construir o Inimigo
«Há uns anos, em Nova Iorque, calhou-me um taxista com um nome de difícil decifração, e esclareceu-me que era paquistanês. Perguntou-me de onde vinha e eu disse-lhe que de Itália. Perguntou-me quantos somos e ficou impressionado por sermos tão poucos e por a nossa língua não ser o inglês.
Por fim, perguntou-me quem são os nossos inimigos. Ao meu «desculpe?», esclareceu pacientemente que queria saber com que povos estaríamos há séculos em guerra por reivindicações territoriais, ódios étnicos, contínuas violações de fronteiras, e por aí fora. Disse-lhe que não estamos em guerra com ninguém. Explicou-me pacientemente que queria saber quais são os nossos adversários históricos, aqueles que nos matam e que nós matamos. Repeti-lhe que não os temos, que a última guerra fizemo-la há mais de meio século e, para além disso, começando-a com um inimigo e acabando-a com um outro.
Não ficou satisfeito. Como é possível que haja um povo que não tem inimigos? Saí, deixando-lhe dois dólares de gorjeta para o compensar pelo nosso indolente pacifismo, depois veio-me à cabeça o que lhe devia ter respondido, isto é, que não é verdade que os italianos não tenham inimigos. Não têm inimigos externos, e, em todo o caso, nunca são capazes de se pôr de acordo para estabelecer quais são, porque estão continuamente em guerra entre eles: Pisa contra Lucca, Guelfos contra Gibelinos, Nortistas contra Sulistas, Fascistas contra Partigianos, Máfia contra Estado, Governo contra Magistratura, e é uma pena que, na época, não se tivesse dado ainda a queda dos dois governos Prodi, senão eu teria podido explicar-lhe melhor o que significa perder uma guerra por culpa do fogo amigo.

Porém, reflectindo melhor sobre este episódio, convenci-me de que uma das desgraças do nosso país, nos últimos sessenta anos, foi precisamente não ter tido verdadeiros inimigos. A unidade de Itália fez-se graças à presença do austríaco ou, como pretendia Berchet, do «hirto e enfadonho alemão»; Mussolini (maldito) pôde gozar do consenso popular incitando-nos a vingar-nos da «vitória mutilada», das humilhações sofridas em Dogali e em Adua e das demo-plutocracias judaicas que nos infligiam as iníquas sanções. Veja-se o que aconteceu aos Estados Unidos quando desapareceu o Império do Mal e o grande inimigo soviético se dissolveu. Arriscavam o ruir da sua identidade, até que Bin Laden, grato pelos benefícios recebidos quando era ajudado contra a União Soviética, estendeu aos Estados Unidos a sua mão misericordiosa e forneceu a Bush a oportunidade de criar novos inimigos, reforçando o sentimento de identidade nacional, e o seu poder.

Ter um inimigo é importante, não apenas para definir a nossa identidade, mas também para arranjarmos um obstáculo em relação ao qual seja medido o nosso sistema de valores, e para mostrar, no afrontá-lo, o nosso valor. Portanto, quando o inimigo não existe, há que construí-lo. Veja-se a generosa flexibilidade com que os ‘naziskins’ de Verona elegiam como inimigo quem quer que não pertencesse ao seu grupo, para se reconhecerem como grupo. Eis que, nesta ocasião, não nos interessa tanto o fenómeno quase natural de identificar um inimigo que nos ameaça, quanto o processo de produção e demonização do inimigo.
Nas ‘Catilinárias’ (II, 1-10), Cícero não tivera necessidade de desenhar uma imagem do inimigo, porque tinha as provas da conspiração de Catilina. Mas constrói-o quando, no segundo discurso, pinta aos senadores a imagem dos amigos de Catilina, reverberando sobre o principal acusado a sua auréola de perversidade moral:
  • Indivíduos que acampam nos banquetes, que estão agarrados a mulheres desavergonhadas, que amolecem pelo vinho, empanturrados de comida, coroados de grinaldas, besuntados de unguentos, debilitados pela copulação, vomitam nas palavras que é preciso massacrar os cidadãos honestos e incendiar a cidade. [...] Vós os tendes diante dos olhos: sem um cabelo fora do sítio, imberbes ou com a barba bem aparada, vestidos com túnicas até aos tornozelos e com as mangas compridas, envolvidos em véus e não em togas... Estes "meninos" tão graciosos e delicados aprenderam não apenas a amar e a ser amados, a dançar e a cantar, mas também a brandir punhais e a administrar venenos.

Cortesia de discoverybrasiluol

O moralismo de Cícero será, depois, o mesmo de Agostinho, que quererá ferver os pagãos, porquanto, ao contrário dos cristãos, frequentam circos, teatros, anfiteatros e celebram festas orgiásticas. Os inimigos são ‘diferentes’ de nós e comportam-se segundo costumes que não são os nossos.
Alguém diferente, por excelência, é o estrangeiro. Já nos baixos-relevos romanos os bárbaros aparecem como barbudos e achatados, e a própria denominação de bárbaros, como é sabido, alude a um defeito de linguagem e, portanto, de pensamento.
Todavia, desde o princípio que são construídos como inimigos não tanto os diferentes que nos ameaçam directamente (como seria o caso dos bárbaros), mas aqueles que alguém tem interesse em representar como ameaçadores, ainda que não nos ameacem directamente, de modo que não é tanto o seu carácter ameaçador que faz ressaltar neles a diferença, mas é a sua diferença que se torna sinal de carácter ameaçador.

Veja-se o que diz Tácito acerca dos hebreus:
  • "Profano é, para eles, tudo aquilo que é sagrado para nós, e o que é para nós impuro é para eles lícito" (e vem à mente o repúdio anglo-saxão pelos comedores de rãs franceses, ou o alemão pelos italianos que abusam de alho). Os hebreus são "estranhos”, porque se abstêm da carne de porco, não põem fermento no pão, descansam ao sétimo dia, casam-se apenas entre eles, circuncidam-se (atenção), não porque seja uma norma higiénica ou religiosa, mas «para marcar a sua diferença», sepultam os mortos e não veneram os nossos Césares. Uma vez demonstrado quão diferentes são alguns costumes reais (circuncisão, repouso no sábado), pode sublinhar-se posteriormente a diferença, inserindo no retrato costumes lendários (consagram a efígie de um burro, desprezam os pais, filhos, irmãos, a pátria e os deuses)".
Plínio não encontra pontos de acusação significativos para os cristãos, visto que tem de admitir que estes não se dedicam a cometer crimes, mas apenas a fazer acções virtuosas. Todavia, manda-os matar, porque não sacrificam ao imperador, e esta obstinação em recusar uma coisa tão óbvia e natural estabelece a sua diferença. Nova forma de inimigo será, depois, com o desenvolvimento dos contactos entre os povos, não apenas aquele que está fora e que exibe a sua estranheza de longe, mas aquele que está dentro, entre nós - diríamos hoje o imigrante extra-comunitário, que, de algum modo, se comporta de maneira diferente ou fala mal a nossa língua, e que, na sátira de Juvenal, é o gregozinho esperto e trapaceiro, descarado, libidinoso, capaz de levar para a cama a avó de um amigo.
Estrangeiro entre todos, e pela cor diferente, é o negro. Na entrada «Negro», da “Encyclopaedia Britannica”, primeira edição americana, 1798, lia-se:
  • Na carnação dos negros encontramos diversas matizes; mas todos se diferenciam, da mesma maneira, dos outros homens em todas as feições dos seus rostos. Faces redondas, maçãs-do-rosto altas, uma testa ligeiramente elevada, nariz curto, largo e achatado, lábios grossos, orelhas pequenas, fealdade e irregularidade de forma caracterizam o seu aspecto exterior. As mulheres negras têm costas muito descaídas e nádegas muito grandes, que lhes conferem a forma de uma sela. Os vícios mais conhecidos parecem ser o destino desta raça infeliz diz-se que o ócio, a traição, a vingança, a crueldade, a impudência, o furto, a mentira, o turpilóquio, a devassidão, a mesquinhez e a intemperança terão extinguido os princípios da lei natural e terão silenciado as censuras da consciência. São estranhos a qualquer sentimento de compaixão e constituem um terrível exemplo da corrupção do homem quando abandonado a si mesmo.
O negro é feio. O inimigo deve ser feio, porque se identifica o belo com o bom (‘kalokagathia’), e um dos caracteres fundamentais da beleza foi sempre aquele a que a Idade Média chamará depois ‘integritas’ (isto é, o ter tudo quanto é requerido para ser um representante médio daquela espécie, pelo que, entre os humanos, serão feios aqueles a quem faltar um membro, um olho, os que tenham uma estatura inferior à média ou uma cor «desumana»). Eis, então, que, desde o gigante zarolho Polifemo ao anão Mime, temos imediatamente o modelo de identificação do inimigo. Prisco de Pânio, no século V d. C., descreve Átila como baixo de estatura, com um tórax largo e uma cabeça grande, os olhos pequenos, a barba fina e grisalha, o nariz achatado e (traço fundamental) a carnação escura. Mas é curioso como o rosto de Átila se assemelha à fisionomia do diabo, tal como o vê, mais de cinco séculos depois, Rodolfo, o ‘Glabro’, de estatura modesta, pescoço delgado, rosto macilento, olhos muito negros, testa bastante enrugada, nariz achatado, boca saliente, lábios intumescidos, queixo estreito e afilado, barba caprina, orelhas hirsutas e pontiagudas, cabelos em pé e desgrenhados, dentadura canina, crânio alongado, peito saliente, costas corcovadas (‘Crónicas’, V, 2)». In Umberto Eco, Construir o Inimigo e outros escritos ocasionais, Gradiva, 2011, ISBN 978-989-616-435-5.

Cortesia de Gradiva/JDACT