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Introdução à leitura da Década Quarta de Diogo do Couto
«Ao que diz, tinha concluído esse trabalho. O texto da Década, completo e passado a limpo, fora mesmo aprovado pelo douto jesuíta Paulo Ferrer e pelo Conselho da Inquisição. E, quando tudo estava pronto para se imprimir, tinha sabido Duarte Nunes que lhe tomara a dianteira uma outra “Década 4, «falsa»” escrita por um tal Couto, guarda-mor do Tombo da Índia.
Duarte Nunes não levou a sua avante. Antes os seus protestos lhe foram perniciosos. O manuscrito de Barros, e os documentos anexos, foram-lhe confiscados. A Década «falsa», teve alvará para impressão, datado de 25 de Março de 1602. E saiu nesse mesmo ano, dos prelos do Colégio de Santo Agostinho, que fizera gemer Pedro Craesbeck. Entretanto tinham começado a publicar-se em Madrid, no ano anterior, as “Décadas da História geral dos feitos dos Castelhanos nas ilhas e terra firme do mar oceano”. Autor António de Herrera y Tordesillas. Como se Couto devesse ter tido de lhe ceder a vez... Como se as Décadas dos Castelhanos, enquanto não se reatava a publicação das dos Portugueses, devessem adiantar-se a estas últimas...
Após o autor, a obra. Ponderá-la, apreciá-la, implica compará-la, o que tentaremos repetidamente com livros muito diversos. Em tais paralelos, como o texto restabelecido segundo normas seguras vai adiante, e como o dos autores aduzidos não foi objecto do mesmo tratamento, harmonizamos, modernizando razoavelmente uns e outros, como temos vindo a fazer.
A epístola dedicatória! Ao redigi-la, muito embora a dirija a Filipe II, é de Camões que se lembra Diogo do Couto. Dos heróicos dedicados a D. Sebastião pelo poeta que «morrera com a Pátria». Da memória eterna que já prometiam “Os Lusíadas” aos Portugueses e seu rei.
Já a ideia-ponto de partida, não é só epocal, mas algo camoniana: mais que pela conservação da espécie os homens forcejam por aquele arremdo de eternidade, que lhes pode valer a conservação do seu nome. Primeiro exemplo, o de Alexandre Magno.
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Ora, Alexandre é o primeiro grande do mundo que “Os Lusíadas” nomeiam:
- «Cale-se de Alexandre e de Trajano...»
E a associação Alexandre/Aquiles, a que fornece a ideia final do poema: se eu for de vós «aceito», (e o vosso peito empreender o que se espera) a minha musa cantará de vós em todo o mundo:
De sorte que Alexandre em vós se veja,
Sem à dita de Aquiles ter inveja
Justamente Couto quer que Filipe II lhe aceite o livro. E o primeiro exemplo com que abona a ideia de que o homem forceja mais ainda pela conservação do nome, que pela da espécie, mais pela projecção da sua memória no tempo, que pela extensão do seu domínio no mundo, é urdido mediante a associação Alexandre/Aquiles. Sim, já senhor do mundo, Alexandre invejou Aquiles, porque este fora cantado de Homero, e ele, se tinha o mundo, não tinha Homero que o cantasse. Assim Alexandre teve «inveja» à «dita de Aquiles». Na pena de Couto:
- “Disto temos um muito claro exemplo no grande Alexandre que, sendo já senhor do mundo, quando parecia que a COBIÇA humana estava satisfeita, então lhe entraram novas INVEJAS, vendo o sepulcro de Aquiles, porque não tinha outro Homero para lhe acabar de rematar sua bem-aventurança para em tudo ser maior que todos”.
Da COBIÇA falaremos mais adiante. Por agora, relevamos que AS INVEJAS, nesta acepção favorável, também são, em Camões, motor de relevantes proezas:
AS INVEJAS da ilustre e alheia história
Fazem mil vezes feitos sublimados;
Há, porém, que distinguir, neste caso de Alexandre. O filho do macedónio Filipe «não tinha em tanto os feitos gloriosos de Aquiles [...] «quanto os numerosos versos» do poeta Homero que os cantava:
Não tinha em tanto os feitos gloriosos
De Aquiles, Alexandre, na peleja,
Quanto de quem o canta os numerosos
Versos. Isso só louva, isso deseja.
Cortesia de foriente
É o zelo da conservação do nome, ilustrado por feitos, mais que o apetite de feitos militares. Alexandre não tinha outro Homero, escreve Couto, «para lhe acabar de rematar a sua bem-aventurança, para em tudo ser maior que todos». E por muito maior «tinha esta glória de ficar no mundo vivendo por fama, que o império de todo ele».
Melhor a fama que o feito. Ou, que me presta o feito, sem a fama?
Outro exemplo: Temístocles. As invejas, de Temístocles, despertam-mas que heróis, feitos ou coisas? Os troféus de Milcíades. Mesma afirmação, mesma expressão em Couto e em Camões.
Nos “Lusíadas”:
Os troféus de Mìlcíades famosos
Temístocles despertam só de inveja,
Na epístola dedicatória: «Os troféus de Milcíades o não deixavam quietar». O próprio Temístocles explica o seu sentimento: o que é que me estimula, o que é que me deleita.
Nos “Lusíadas”:
E diz que nada tanto o deleitava
Como a voz que seus feitos celebrava.
Na epístola dedicatória: «muito pensativo dizia que os troféus de Milcíades», etc.
Por um momento deixemos os clássicos. Couto acha maneira de evocar o milagre de Ourique, que significa a aprovação pelo Altíssimo da independência portuguesa. E fá-lo em termos que lembram a introdução de Camões à sua explicação das armas de Portugal. Passo de Couto:
- “Este valoroso príncipe [D. Afonso Henriques], depois daquela tão famosa e milagrosa vitória do campo de Ourique, em que venceu os cinco reis mouros, LOGO PINTOU EM SEU ESCUDO, que ainda era branco, aquele sinal de nossa redenção, que Nosso Senhor, por muito particular mimo e mercê, lhe quis mostrar no Céu, por lhe dar esperanças da vitória”.
Couto evoca, pois, a decisão de D. Afonso, e como ela é tomada imediatamente: LOGO PINTOU NO SEU ESCUDO... O mesmo em Camões. No próprio campo de Ourique, o «grão rei», procede à pintura:
- AQUI PINTA NO BRANCO ESCUDO UFANO... (III-53). Outro pormenor significativo neste verso: D. Afonso, ao campo de Ourique, levava ainda o escudo BRANCO. Ainda lá não representara sinal de vitória nenhuma. O mesmo o sublinha Diogo do Couto numa curta proposição temporal: «logo pintou em seu escudo, que ainda era BRANCO... ».
In Diogo do Couto, Década Quarta da Ásia, volume I, coordenação de M. Augusta Lima Cruz, Coimbra Martins, Fundação Oriente, 1999, ISBN 972-27-0876-7.
Cortesia da Fundação Oriente/JDACT