sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

José Marques. O Testamento de D. Lourenço Vicente. «… que apresentou ao tabelião Vasco Domingues, na presença do Cabido convocado para o efeito, um texto «escripto em oyto foIhas e mea de papell e intralinhada per sua mãao em alguns lugares das ditas oito folhas e meã», contendo minuciosa exposição da sua última vontade»

Braga, Maio de 1990
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Introdução
A importância dos testamentos como fontes históricas de primeira qualidade é reconhecida por quantos se dedicam a estudos de história económica e social, sendo particularmente privilegiados pelos cultores da história das mentalidades, com forte incidência no âmbito da vertente devocional, de certas estratégias de poder e da posição do homem face aos problemas do além-morte.
Nestes domínios, sobretudo quando se pretende definir mentalidades colectivas, para se chegar a resultados verdadeiramente conclusivos, impõe-se o recurso a um elevado, para não dizer ao maior número, possível, de tais fontes, confinando-as a períodos cronológicos e áreas concretas bem delimitadas, e submetendo os dados recolhidos a tratamento estatístico.

Tal perspectiva, porém, não invalida o estudo de testamentos, isolados que, pela qualidade dos testadores e natureza das respectivas disposições de última vontade, se apresentaram como susceptíveis de esclarecerem a biografia e projectarem luz sobre a actuação de pessoas singulares ou mesmo de instituições a que, de algum modo, estiveram ligadas.
É precisamente sob este ponto de vista que se justifica a análise do testamento, do, arcebispo D. Lourenço Vicente (Comemorações do IX Centenário da Dedicação da Sé de Braga, onde, entre finais de 1385 e 1391 ele mandou edificar uma capela gótica, que, apesar de as vicissitudes do tempo terem consumido o seu artístico túmulo, continua a abrigar o seu corpo incorrupto.

NOTA: Embora Manuel Barreiros em “A Cathedral de Santa Maria de Braga. Estudos críticos archeologico artísticos, Porto 1922, afirme que esta capela, «principiada logo depois de 1385, deveria estar concluída antes ou no princípio de 1391», podemos afirmar que estava concluída em 1391, pois em 28 de Agosto desse ano, apresentou dentro dela ao notário o seu testamento para que fosse oficializado.

Parece por isso oportuno ir-se além das vagas referências que José A. Ferreira colheu nesta fonte e revelá-la na íntegra e isto por um duplo motivo:
  • primeiro, porque o testamento, autos e inventários subsequentes permitem ter um conhecimento, rigoroso das circunstâncias em que este prelado, herói da defesa de Lisboa, durante o cerco castelhano de 1384, e da batalha de Aljubarrota, em 1385, instituiu a sua capela funerária e o corpo de capelães que aí diariamente celebrariam o culto divino;
  • depois, porque articulando as obrigações decorrentes deste testamento com outras acumuladas ao longo do tempo poderemos compreender melhor o ritmo e a vitalidade que algumas instituições sediadas na Sé imprimiam à vida litúrgica praticada.

Planta da abóbada da capela Sra. do Ó, posteriormente chamada de
Nossa Senhora do Livramento
Túmulo do conde D. Henrique
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A fonte
Esta fonte, que José A. Ferreira conheceu, mas não pode explorar, ,é uma cópia simples da pública forma solicitada pelo cónego Álvaro Pires, testamenteiro do arcebispo D. Lourenço Vicente, em 16 de Junho de 1404, que, além do testamento propriamente dito, patente ao tabelião Vasco Domingues, em 28 de Agosto de 1391, para autenticação, inclui mais três peças:
  • um auto de entrega de avultado numerário pelo arcebispo «na arqua do tesouro do sua capella», em 11 de Novembro de 1391, 
  • o inventario dos preciosos livros, alfaias e objectos litúrgicos de prata com que ele a dotou, confiando tudo à guarda do respectivo tesoureiro, Fernão Martins, abade de S. Paio de Pousada, no dia 17 de Fevereiro de 1397,
  • e, finalmente, o inventário de um significativo número de toalhas de altar, destinadas ao serviço dessa capela, entregues ao mesmo tesoureiro, no paço arquiepiscopal, em Setembro desse mesmo ano de 1397.
A importância desta fonte, apesar de se tratar de uma cópia simples, datável do segundo quartel do século XVI, como, decorre do facto de estar escrita em letra cortesã, aumenta face ao completo desconhecimento actual dos vários originais presentes ao notário apostólico, cónego Pero Lourenço, a fim de poder elaborar a pública-forma, que, mais tarde, viria a ser copiada com algumas lacunas na parte final, decorrentes da incapacidade de leitura da escrita gótica, e ao facto de as informações nela contidas procederem directamente do arcebispo instituidor, que apresentou ao tabelião Vasco Domingues, na presença do Cabido convocado para o efeito, um texto «escripto em oyto foIhas e mea de papell e intralinhada per sua mãao em alguns lugares das ditas oito folhas e meã», contendo minuciosa exposição da sua última vontade.

Fac-simile da cópia da pública-forma do testamento
de D. Lourenço Vicente
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Nótulas biográficas
Antes de nos debruçarmos sobre o texto em causa, é oportuno recordar alguns traços mais característicos da biografia de D. Lourenço Vicente, que bem merece um estudo monográfico revelador de toda a grandeza da sua personalidade e notável acção. É certo que José A. Ferreira salientou aspectos relacionados com as funções arquiepiscopais para que foi designado por Gregório XI, em Dezembro de 1373, merecendo-lhe especial atenção, a violenta campanha contra ele desencadeada e conduzida por eclesiásticos, apoiados por leigos influentes, chegando mesmo a ser suspenso do exercício da sua prelazia e exilado da cidade e da diocese de Braga; recordou também a sua participação activa nos acontecimentos políticos e militares de 1383-1385, com tanta vivacidade e humor descritos por Fernão Lopes na “Crónica de D. João I”, sendo, inclusive, o primeiro subscritor do pedido de dispensa apostólica dos votos religiosos para o novo rei, eleito nas Cortes de Coimbra, poder casar.
Temos notícias seguras da sua acção, verdadeiramente reformadora, traduzida nas constituições sinodais chegadas até nós, na revitalização de algumas colegiadas menores, na energia com que puniu a desobediência formal dos monges bentos de Arnóia, não hesitando declará-los incursos na pena de excomunhão, no vigor com que exigiu de D. João I providências na defesa das instituições monásticas e diocesanas contra as violências de nobres e poderosos, etc.

Outra documentação avulsa esclarece que foi cónego de Lisboa e bacharel em leis, tendo beneficiado também de uma conezia e respectiva prebenda na Sé da Guarda , até à sua eleição para arcebispo de Braga». In José Marques, O Testamento de D. Lourenço Vicente e as suas Capelas na Sé de Braga e na Lourinhã, Academia Portuguesa da História, Braga 1990, Lisboa 1993.

Cortesia da Academia Portuguesa da História/JDACT