sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

João de Barros. Décadas. «Porém, a estas razões houve outras em contrário, que, por serem conformes ao desejo de el-rei, lhe foram aceites. E as principais que o moveram, foram herdar esta obrigação com a herança do reino, e o infante dom Fernando, seu pai ter trabalhado neste descobrimento, quando por seu mandado se descobriram as ilhas de Cabo Verde»

Cortesia de notasereflexoes

«Como el-rei dom Manuel, no segundo ano do seu reinado, mandou Vasco da Gama com quatro velas ao descobrimento da Índia.
Falecido el-rei dom Joam sem legítimo filho que o sucedesse no reino, foi alevantado por rei (segundo ele deixara em seu testamento) o duque de Beja, dom Manuel, seu primo co-irmão, filho do infante dom Fernando, irmão de el-rei dom Afonso; a quem por legitima suceção era devida esta real herança, da qual recebeu posse pelo cetro dela, que lhe foi entregue em Alcácer do Sal, a vinte sete dias de Outubro do ano de nossa redenção de mil quatro centos noventa e cinco; sendo em idade de vinte e seis anos, quatro meses e vinte cinco dias (como mui particularmente escrevemos em a outra outra nossa parte intitulada Europa, e ali em sua própria crónica).
E porque, com estes reinos e senhorios, também herdava o prosseguimento de tão alta impresa como seus antecessores tinham tomado, que era o descobrimento do oriente por esse nosso mar oceano, que tanta industria, tanto trabalho, e despesa, por discurso de setenta e cinco anos tinha custado, quis logo, no primeiro ano de seu reinado, mostrar quanto desejo tinha de acrescentar à coroa deste reino novos títulos sobre o senhorio de Guiné, que, por razão deste descobrimento, el-rei dom Joam, seu primo, tomou, como posse da esperança de outros maiores estados que por esta via estavam por descobrir. Sobre o qual caso, no ano seguinte de noventa e seis, estando em Montemor-o-Novo, teve alguns gerais conselhos: em que ouve muitos e diferentes votos, os mais foram que a Índia não se devia descobrir. Por que, além de trazer consigo muitas obrigações, por ser estado mui remoto para poder conquistar e conservar, debilitaria tanto as forças do reino que ficaria ele sem as necessárias para sua conservação.

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Quando mais que, sendo descoberta, podia cobrar este reino novos competidores, do qual caso já tinham experiência, no que se moveu entre el-rei dom Joam e el-rei dom Fernando de Castela, sobre o descobrimento das Antilhas, chegando a tanto, que vieram repartir o mundo em duas partes iguais para o poder descobrir e conquistar. E pois desejo de estados não sabidos, movia já esta repartição, não tendo mais antes os olhos que esperança deles e algumas amostras do que se tirava do bárbaro Guiné, que seria vindo a este reino quanto se dizia daquelas partes orientais. Porém, a estas razões houve outras em contrário, que, por serem conformes ao desejo de el-rei, lhe foram aceites. E as principais que o moveram, foram herdar esta obrigação com a herança do reino, e o infante dom Fernando, seu pai ter trabalhado neste descobrimento, quando por seu mandado se descobriram as ilhas de Cabo Verde, e mais por singular afeição que tinha à memória das cousas do infante dom Anrique, seu tio, que fora o autor do novo título do senhorio de Guiné que este reino houve, sendo propriedade mui proveitosa sem custo de armas e outras despesas que têm muito menores estados do que ele era. Dando por razão final, aqueles que punham os inconvenientes a se a Índia descobrir, que Deus, em cujas mãos ele punha este caso, daria os meios que convinham a bem do estado do reino.

Cortesia de purl

Finalmente el-rei assentou neste descobrimento, e depois, estando em Estremoz, declarou a Vasco da Gama, fidalgo de sua casa, por capitão mor da vela que havia de mandar a ele, assim pela confiança que tinha de sua pessoa como por ter acção nesta ida, cá, segundo se dizia. Estevam da Gama, seu pai já defunto, estava ordenado para fazer esta viagem em vida de el-rei dom Joam. O qual, depois que Bartholomeu Dias veio do descobrimento do cabo de Boa Esperança, tinha mandado cortar a madeira para os navios desta viagem, por a qual razão el.rei dom Manuel mandou ao mesmo Bartholomeu Dias que tivesse cuidado de os mandar acabar segundo ele sabia que convinha, para sofrer a fúria dos mares daquele grão cabo de Boa Esperança, que na opinião dos mareantes começava criar outra fabula de perigos, como antigamente fora a do cabo Bojador, de que no principio falamos. E assim, pelo trabalho que Bartholomeu Dias levou ao apercebimento destes navios como para ir acompanhando Vasco da Gama até o por na paragem que lhe era necessária à sua derrota, el-rei lhe deu a capitania de um dos navios que ordinariamente iam à cidade de São João da Mina.
E sendo já no ano de quatrocentos noventa e sete, em que a frota para esta viagem estava de todo prestes, mandou el-rei, estando em Montemor-o-Novo, chamar Vasco da Gama e os outros capitães que haviam de ir em sua companhia, os quais eram Paulo da Gama, seu irmão, e Nicolau Coelho, ambos pessoas de quem el-rei confiava este cargo. E posto que por algumas vezes lhe tivesse dito sua tenção acerca desta viagem, e disso lhe tinha mandado fazer sua instrução, pela novidade da impresa que levava, quis usar com ele da solenidade que convém a taes casos, fazendo esta fala publica, a ele e aos outros capitães, perante algumas pessoas notáveis que eram presentes, e para isso chamadas». In João de Barros, Décadas, Selecção, Prefácio e notas de António Baião, Colecção de Clássicos Sá da Costa, Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, 1945.

Cortesia Livraria Sá da Costa/JDACT