terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Livro da Vertuosa Benfeytoria. Infante D. Pedro e Fr. João Verba: «Houve quem defendesse que o Livro da virtuosa benfeitoria, por "força da coerência, deveria conter em potencial a política da regência" [de D. Pedro], o que não nos parece dever ser função da obra, que, além do mais, é muito anterior à regência e perspectivada num contexto que não incluía a previsão dos acontecimentos subsequentes à morte prematura de D. Duarte»

Cortesia da uc

Introdução
O ‘estado da questão’
«O “Livro da Virtuosa Benfeitoria”é uma obra fundamental no plano da cultura, da literatura e da língua portuguesas do século XV; não se trata, como é já sabido, de uma simples tradução do ‘De beneficiis’ de Lúcio Aneu Séneca, mas de um trabalho de vasta erudição, desenvolvido com base num amplo conhecimento (directo e/ou indirecto) dos textos bíblicos e de autores clássicos e medievais enquadrado por uma importante capacidade de reflexão autónoma. É também uma obra literária pela sua concepção e pela sua expressão formal, e distingue-se como um marco linguístico pela sua posição liminar numa fase crucial do enriquecimento vocabular da língua portuguesa. Produto de uma corte em que toda a vida social foi orientada por princípios morais, religiosos e disciplinares muito rígidos, o “Livro da virtuosa benfeitoria” pode ser definido no seu conteúdo de várias maneiras, conforme o que cada um vê nele de maior interesse.

NOTA: Houve quem defendesse que o Livro da virtuosa benfeitoria, por «força da coerência, deveria conter em potencial a política da regência» [de D. Pedro], o que não nos parece dever ser função da obra, que, além do mais, é muito anterior à regência e perspectivada num contexto que não incluía a previsão dos acontecimentos subsequentes à morte prematura de D. Duarte.

Digamos, com o Prof. Costa Pimpão, que ele é, em termos genéricos, «uma fundamentação filosófica do bem-fazer» e das condições do seu exercício, segundo a natureza, a razão e a autoridade, sem deixar de ser, nos seus objectivos, «um directório da consciência do príncipe de ‘bom talante’ e, como tal, destinado a orientá-lo na justiça da benfeitoria». Não obstante ter sido tardiamente conhecido na íntegra pelos estudiosos (já neste século), e através de edições extremamente deficientes, o “Livro da virtuosa benfeitoria” foi já analisado com bastante profundidade nos aspectos que determinam a sua inserção no contexto da cultura medieval portuguesa, nomeadamente os morais e políticos, que constituem o núcleo do seu ideário filosófico. Ainda, porém, se disse muito pouco dos seus aspectos linguísticos e quase nada dos literários, uns e outros credores de uma atenção mais aplicada.

Folha 5 do manuscrito de Viseu
jdact

O conhecimento de ter existido um “Livro da virtuosa benfeitoria” remonta à época da sua redacção. Um volume precisamente com esse título figuraa no registo dos livros que constituíam a biblioteca do rei D. Duarte, e este refere-se-lhe concretamente no capítulo XXVII do Leal conselheiro:
  • «E o iffante dom Pedro, meu sobre todos prezado e amado irmaão, de cujos feitos e vida muito som contente, compos o livro da virtuosa benfeituria e as oras da confissom»; e no capítulo XXVIII: «E daquesta virtude [liberaleza] no livro da virtuosa benfeitoria, que meu sobre todos prezado e amado irmaão o ifante dom Pedro compos, he bem e largamente trautado».
NOTA: o registo pode ver-se publicado no ‘Livro dos conselhos de el-rei D, Duarte’ (Livro da Cartuxa), ed. diplomática (transcrição de João Alves Dias), Lisboa, Estampa. A referência ao LVB vem na p. 207. Nessa edição dá-se o registo como datável de 1433 a 1438. O título que o encima parece, porém, sugerir a sua atribuição a uma data posterior ao falecimento de D. Duarte em 9 de Setembro de 1438: «Estes são os liuros que ‘tinha’ el rey dom Duarte». De qualquer modo, esse rol só documenta a existência de um exemplar do LVB nessa biblioteca e nada diz sobre a data em que ele lá teria dado entrada nem qual o seu autor.

Zurara não se lhe referiu expressamente, mas conhecia-o tão bem que até copiou dele largos trechos para a sua Crónica da tomada de Ceuta e, em menor escala, para as restantes. Refere-se-lhe também Rui de Pina no capítulo CXXV da Crónica de D. Afonso V, ao tratar das «feiçoões, costumes e virtudes do Yfante Dom Pedro». É uma passagem muito conhecida:
  • «elle tirou de latym em linguagem o Regimento de Pryncepes, que Frey Gil correado compos, e assy tirou o lyvro dos offycios de Tullio, e Vegecio de Re Militari, e compôs o livro que se diz da Virtuosa Bemfeytorya com huma confysam a qualquer cristão muy proveytosa».
Bastante mais tarde, chegou a vez de se lhe referirem os grandes bibliógrafos: primeiro, naturalmente, Barbosa Machado, em 1752, depois Inocêncio, em 1862. O abade de Sever só sabia o que tinha lido em Rui de Pina, única fonte que honestamente cita com exactidão: para ele, o “Livro da virtuosa benfeitoria” era apenas uma obra que se conservava em estado de manuscrito e de que não conhecia o paradeiro.

Folha 1 do manuscrito de Madrid
jdact

Inocêncio vai um pouco mais adiante: conhece um manuscrito existente na Academia Real das Ciências, em Lisboa, de que transcreve integralmente a dedicatória ao infante D. Duarte e o plano da obra, e alerta para a existência de outro manuscrito na Academia Real da História, de Madrid, este do século XV, e que, no seu entender, teria de entrar em linha de conta quando se editasse o texto.
Oliveira Martins, ao publicar “Os filhos de D. João I” em 1891, também sabe apenas o que leu em Inocêncio, o que, pelo menos, lhe permite fazer uma pálida ideia do conteúdo da obra.
Teófilo Braga, no primeiro volume, relativo à Idade Média, da “História da literatura portuguesa (Recapitulação”), publicado em 1909, refere-se a dois manuscritos inéditos do “Livro da virtuosa benfeitoria”, o da Academia das Ciências de Lisboa e o da Biblioteca Pública Municipal do Porto, transcrevendo algumas passagens de um deles (sem especificar qual), e define a obra, superficialmente, como «um tratado moral em forma de compilação» e «uma compilação dos sete tratados de Séneca».
O conhecimento integral do texto só viria a ser facultado aos estudiosos em 1910, quando José Pereira de Sampaio publicou no Porto uma edição baseada em dois manuscritos da Biblioteca Pública Municipal. Esta edição desencadeou uma sucessão de acurados estudos sobre o conteúdo, além de dar ocasião ao conhecimento público de um manuscrito quatrocentista conservado na Biblioteca Pública de Viseu. Desde que o Prof. Manuel Paulo Merêa, em 1919, publicou o seu trabalho, ainda hoje importante, sobre “As teorias políticas medievaes" no «Tratado da Virtuosa Bemfeitoria», a obra do infante D. Pedro foi objecto de numerosas investigações em que se procurou analisar o seu conteúdo e posicioná-la, sobretudo, na perspectiva do pensamento português da época. Contribuíram para isso, de variadas maneiras e com objectivos mais ou menos amplos, nomes que não podem ser esquecidos neste momento, como Joaquim de Carvalho, com elementos dispersos por algumas das suas importantíssimas obras; Alberto Martins de Carvalho, com o primeiro estudo global, datado de 1925 2; Diamantino Martins, com uma série de trabalhos que vão de 1938 a1965; Francisco Elias de Tejada Spínola, em 1943 e 1947, com novos estudos sobre as ideias políticas e filosóficas; Álvaro Júlio da Costa Pimpão, em 1947, com as primeiras observações de carácter literário». In Infante D. Pedro e Fr. João Verba, Livro da Vertuosa Benfeytoria, introdução de Adelino A. Calada, Universidade de Coimbra, 1994, ISBN 972-616-137-1.

Cortesia da U de Coimbra/JDACT