Cortesia de mundolusiada
«Chegados ao Porto, (O Carolina entrou a barra do Douro a 19 de Novembro de 1869, como se lê no Primeiro de Janeiro do dia 20; e completou a sua descarga no 1º de Dezembro seguinte, Jornal do Porto). Antero desembarcou e ali ficou. Negrão seguia por terra para Lisboa. E o «Carolina» descarregava o trigo ensacado que nada sofrera com a viagem. O aparecimento do barco surpreendeu porém em alto grau o nosso meio marítimo. Viera notícia da data em que ele saiu de Brooklyn; pouco depois chegavam ao Porto outras notícias assustadoras acerca da grande tormenta em que, nos quatro dias seguintes ao da partida, haviam naufragado, na costa da América, 132 embarcações, entre grandes, pequenas e de pesca. E todos imaginaram que o nosso «patacho» se perdera. Por isso, quando chegou a Lisboa, Joaquim Negrão não estranhou, embora muito o contrariasse, a carta que ali veio encontrar e em que seu pai, com a máxima energia, lhe ordenava a venda do navio e a desistência da vida do mar.
O «patacho» foi vendido por mil libras esterlinas, dois contos de reis de lucro. Para Negrão grande foi porém o desgosto de se ver coagido a renunciar a uma vida que tão bem quadrava ao seu feitio e às suas aspirações de viajante. Ainda assim só desistiu após alguns dias de luta; porque teve, ao mesmo tempo, de abandonar o transporte dum carregamento de carne salgada, que contratara da América do Sul para a Índia e, graças ao qual, havia sonhado visitar mais tarde a China e Japão! ...
Os fretes deram-lhe sempre largamente para as despesas de viagem… E, entretanto, acabou-se a história.
Cortesia de trintaanosdepois
Joaquim Negrão, nessa época, continuou a encontrar-se em Lisboa com Antero de Quental que, até um dia, lhe fez uma confidência deveras interessante. Saía Negrão do Martinho e, em sentido contrário, vinha o poeta pelo ‘Rocio’. Mas vinha furioso.
Fora, com o João de Deus, a um tasco comer feijão encarnado. Conversaram ambos muito e este último, com a vivíssima intuição que possuía, achava rapidamente, para certos problemas que preocupavam Antero, soluções que este nunca entrevira. E, depois de afirmar a Negrão que não poderia encontrar-se mais com João de Deus, Antero acabou por dizer:
- Quero evitar o domínio do espírito de outra pessoa sobre o meu. Tanta rapidez de percepção incomoda-me.
Com Negrão é que ele nunca teve a menor questiúncula. Concorria para isso a grande serenidade, o ânimo simples, bondoso, atraente e jovial do capitão do ‘Carolina’. Homem sóbrio e equilibrado, destituído do menor exagero em todo o seu modo de sei, mas possuindo o segredo da decisão oportuna e calma, Negrão era o companheiro ideal para o nevrótico, para o dispéptico irritável que sempre foi Antero. Depois, sem nunca ser perdulário, gostava de viver bem, com largueza. E finalmente impunha-se, sem violência alguma, a toda a tripulação, sendo aliás afectuoso e delicado para com todos. Deste conjunto de qualidades e da sensatez do seu lúcido espírito resultou a confiança que nele depositava Antero. No convívio dum tal companheiro, adquiria ele uma constante e harmoniosa serenidade. Via-o com os mesmos olhos com que observava o público das suas conferências; e falava-lhe correntemente, sem nunca gesticular, conservando na mão um lápis ou uma varinha feita de papel, em que de continuo passavam os seus dedos. Diz-me ainda o snr. Mariano Machado de Faria e Maia que Antero tinha na mais alta estima o carácter direito, ousado e aventureiro até, de Joaquim Negrão.
Cortesia de antoniocarneiro e lutadoresdarepublica
Qual porém teria sido, para Antero, o resultado da sua viagem à América? Suponho. que excelente sob qualquer dos dois aspectos porque a encaremos: o da saúde. física e o do conhecimento da língua alemã.
Quanto ao primeiro, recordo-me de ver Antero durante talvez uma hora inteira, poucos meses depois do seu regresso de Nova York, e de lhe não notar sintoma algum da fadiga e da fraqueza que o acompanharam em toda a viagem transatlântica. Ele examinou-me em ‘Historia’, no liceu do Porto, aí por Junho ou Julho de 1870. Lembro-me até que me interrogou sobre a invasão mourisca da Espanha; e que, enquanto eu toscamente lhe despejava em cima o ‘Eurico’ do Herculano, ele me observava com a máxima atenção e me prendia no puro e raro azul, sereno, profundo, dos seus olhos (A página 147 do “In Memoriam”, de João Machado de Faria e Maia refere-se aos «claros olhos verdes» de Antero. Eu não tenho porém apenas razões particulares para sustentar a cor azul; tenho a confirmação de muitas pessoas que o conheceram, entre os quais a do snr Mariano Augusto Machado de Faria e Maia, tio do João, a página 438 também do “In Memoriam: «os seus belos olhos azues como o céu»). E pode ser que, naquele momento, estivesse pensando se a romântica narrativa que eu procurava reproduzir não era tão verdadeira como o mais bem documentado dos tratados, a mais autêntica das crónicas. Facto é que nem um só instante me interrompeu; e que me aprovou.
Nunca mais o vi; mas nessa ocasião fiquei convencido de que ele não era um doente. A sua maior vida mental realizou-se efectivamente depois dessa data,. E a viagem teria porventura produzido nele, em todo o seu organismo, uma reacção salutar, uma vitalidade geral superior à que revelava no ano da ida à América.nNegrão pensa também que ele melhorou bastante depois da viagem. Mas a plena confirmação do que eu afirmo é dada por Alberto Sampaio nas seguintes palavras que se encontram a página 21 do “In Memoriam”:
- «Esta viagem, num meio todo familiar, com os milhares de incidentes e vagares da navegação à vela, que lhe davam opportunidade de philosophar, tirandn-o durante alguns, me-es d'estes estreitos horisontes, fez-lhe sem duvida um effeito saudável (62)».
In António Arroyo, A Viagem de Antero de Quental à América do Norte, Edição da Renascença Portuguesa, Porto, University of Califórnia Libraries, PQ 9261 Q34Z5ar, AA 000 453 081 2.
Cortesia de University of Califórnia Libraries/JDACT