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As duas características fundamentais
«A “Realidade” que a inteligência dos homens se esforça por compreender, o Mundo, no seu sentido mais largo, apresenta-se com duas características essenciais:
1ª – “Interdependência”. Todas as coisas estão relacionadas umas com as outras; o Mundo, toda esta “Realidade” em que estamos mergulhados, é um organismo vivo, uno, cujos compartimentos comunicam e participam, todos, da vida uns dos outros.
Olhemos, por exemplo, coisa tão simples como o crescimento duma pequena erva num campo, e examinemos, com cuidado, as coisas de que depende: temos, em primeiro lugar, a constituição geológica do solo, a quantidade de calor recebida do Sol, etc., coisas que não podem perceber-se desligadas da situação da Terra no sistema solar, e deste no Universo; é por consequência, todo o problema cosmológico. Em segundo lugar, sobre o crescimento da pequena planta influem as condições climatéricas da região, e estas dependem de toda a complexidade de fenómenos atmosféricos o marinhos, actividade das manchas solares, etc.. Temos, ainda, a acção exercida pelos outros organismos vegetais e animais, há, próximo da pequena erva, outras plantas? Quais? E animais? De que natureza? Concorrendo para a sua destruição ou para a sua conservação? É a região habitada pelo homem? Se é, que interesse tom ele pela pequenina planta? Que animais cria ele que a possam prejudicar ou favorecer? Porquê? que condições de fertilidade proporciona ele ao solo? Que regime de cultura exerce? Porquê? Quais são as condições de trabalho da região?
Como se vê, uma vez examinada a questão com um pouco de cuidado, começam a aperecer as dependências, a ligar-se os problemas:
- problema cosmológico,
- problema físico,
- problema económico;
- problema social,
- tocam-se e entrelaçam-se no mais íntimo detalhe do organismo universal.
2ª – “Fluência”. O Mundo está em permanente evolução; todas as coisas, a todo o momento, se transformam, tudo ”flue”, tudo “devém”. Isto, que é a afirmação fundamental do filósofo ‘Heraclito’ de Efeso foi, posteriormente, reconhecido por grandes pensadores e pode ser verificado por qualquer de nós, seja qual for aquele objecto em que fixemos a nossa atenção.
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Pois não é verdade que tudo está sujeito a uma mesma lei de nascimento, vida e morte, que, por sua vez, vai originar outros nascimentos? Isto é evidente para os seres do mundo animal; é-o ainda para os do mundo vegetal, mas parece falso para os objectos do mundo mineral.
No entanto, basta observar com atenção, tomando o recuo conveniente; notar como até as coisas mais estáveis se alteram com o tempo: como o ferro envelhece com a ferrugem, como a rocha se desagrega e se torna areia, como as próprias montanhas mudam de forma pela erosão, como os rios mudam do leito, as margens dos continentes ganham e perdem em luta com o mar.
Tudo está numa permanente agitação e, por graus insensíveis, evolucionando de forma que a Terra não é, neste instante, a mesma que era há momentos, e será daqui a uns momentos diferente da que é agora. Do tal modo que nem a própria frase «o que é agora» tem significado real; durante o tempo que ela levou a pronunciar, ou a escrever, o processo de evolução actuou e a Terra transformou-se.
E evolucionando assim, ela participa ainda doutra evolução mais larga; girando em torno do Sol, ela entra na vida de outro organismo, o sistema solar, com a sua evolução própria que condiciona a de cada um dos seus componentes. E assim, do mesmo modo, de grau em grau de complexidade e de extensão; do sistema solar à Via Láctea, desta ao Universo, considerado como conjunto de ilhas galácticas. De modo que, do extremo superior ao inferior da escala, do movimento prodigioso de ‘expansão' do Universo, ao movimento, não menos prodigioso, das partículas constituintes do átomo, tudo flue, tudo devém, tudo é, a todo o momento, “uma coisa nova”.
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Este princípio do permanente rejuvenescimento tem preocupado os pensadores de todos os tempos e provocado as atitudes mais contraditórias.
Uns, aceitando-o como um dado real, uma característica fundamental da Natureza, fazem dele a base de partida do seu esforço na compreensão do real. Outros, aterrorizados pelo sentimento de instabilidade que ele provoca, instabilidade que nada poupa, do mundo físico ao mundo social, reagem, procurando substituir o mundo real do ‘devir’, por um mundo artificial da “permanência”.
A História do Pensamento está cheia desta luta gigantesca, luta de que a ciência só desponta em estado relativamente adiantado da civilização, estado que permita a todos viver e a alguns pensar». In Bento de Jesus Caraça, Conceitos Fundamentais da Matemática, Tipografia Matemática, Lisboa, 1951.
Cortesia da Tipografia Matemática/JDACT