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«Nesses anos dos séculos X e XII, quando do Condado Portucalense se passava à decisiva fase da criação do Reino (autónomo) de Portugal, a unidade cultural espanhola e portuguesa era uma realidade, passem embora os diversificados mosaicos étnicos, e daí as consequentes subculturas, que se verificavam.
A par dos textos em latim que caracterizavam a escrita do maior número de actos sociais e culturais públicos, desde a escrituração de autos de partilhas às simples versificações à amada, as estrofes das cantigas de carácter religioso ou profano tinham (também) lugar a partir dessa língua. E se o “Testamento de Afonso II”, de 1214, marca (com a «Notícia de Torto», mesmo que um pouco anterior) a carta de alforria da língua protoportuguesa, a chegada (até este país recentemente conquistado) de «notícias» de Sant'Iago por intermédio dos maiores poetas desse século XIII, designadamente Afonso X, o rei-poeta e João Ayras de Santiago, dá-nos um enriquecedor testemunho dos traços de união, de um ponto de vista também estético literário, entre os dois reinos já independentes.
Havendo, com efeito, antes do rico período literariamente denominado por «dionisíaco», apenas os períodos alfonsino e pré-alfonsino, estas duas designações dão uma verdadeira mostra do papel inovador que teve esse rei Afonso, ao lado de Ayras de Santiago, em todo o panorama das letras ibéricas deste período.
Mas se então o papel de certo modo unificador, destes dois grandes autores, de um ponto de vista de escola poética, teve uma importância marcante em toda a Península, o carácter das instituições político-religiosas dos dois países não lhes seguia o exemplo.
NOTA: In “Textos Portugueses Medievais”, Coimbra, 1964, que o «Auto de Partilhas», de 1192, e o «Testamento», do ano seguinte, não podem jamais ser considerados os dois mais antigos textos não literários em português, apontam-nos, no entanto, e em alternativa, a “Notícia de Torto”, de um período supostamente anterior a 1211 e o “Testamento de Afonso II” de 1214. É precisamente neste último documento que descortinamos já, numa língua que poderemos identificar como protoportuguês, algumas referências a Santiago da Galiza: «...E, ssi eu for morto, rogo o apostoligo, come padre e senior, e beigio a a terra ante seus pees, que el recebia en sa comëda e so seu difindemëto a raina e meus filhos e o reino. E, ssi eu e a raina formos mortos, rogo-li e prego-li que os meus filios e o reino segiã en sa comëda. E mãdo da dezima dos morauidíís e dos dieiros que mi remaserú de parte de meu padre, que sú en Alcobaza, e do outr'auer mouil que i posermos pora esta dezima, que segia partido pelas manus do arcebispo de Bragaa e do arcebispo de santiago e do bispo do Portu e de Lixbona e de Coïbria e de Uiseu e de Lamego e da Idania e d'Euora e de Tui e do tesoureiro de Bragaa... E do que remaser fazam en tres partes, e as duas partes, e as duas partes agiã meus filhos e mias filias, e departiã se outr'eles igualmente. Da terceira, o arcebispo de Bragaa e o arcebispo de Santiago e o bispo do Portu e o de Lixbona e o de Coïbria e o de Uiseu e o d'Êuora fazã desta guisa: que u quer que eu moira, quer en meu reino, quer fora do meu regno, fazam aduzer meu corpo permias custas a Alcobaza. E mãdo que den a meu senior o papa. iij. mr., a Alcobaza, ij mr. por meu ãniuersario, a Santa Maria de Rocamador, ij mr. por meu âniuersario, a Santiago de Galicia...». Esta terminologia de ‘escolas poéticas medievais portuguesas’ não conquistou o consenso de todos os que, entre nós, se debruçaram sobre a mesma questão.
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Já em meados do século XI, mais precisamente em 1065, à altura da morte de Fernando Magno (rei de Castela, Leão e Astúrias), a divisão desses estados pelos seus três filhos, Sancho, Afonso e Garcia, principiava a tornar-se um facto consumado. Deles, foi Garcia que ficou de posse da Galiza bem como das terras conquistadas ao sul do Douro. Quanto a Garcia, esse, por seu lado, preocupou-se logo com a restauração de Braga. Reuniu, para esse efeito, a cúria régia em Santiago de Compostela, dando aí a conhecer o seu intuito de ordenar a restauração da igreja bracarense, advogando a restituição dos bens que a ela pertenciam, mesmo que para tal se tivessem de preconizar as devidas indemnizações.
Esse monarca, segundo os registos de Augusto Ferreira, decidia, assim, doar logo à Igreja de Sant'Iago, o Real Mosteiro de Cordario, «para que lhe cedesse S. Victor, S. Fructuoso, Correlhã e mais possessões, e começou a edificar a igreja de Santa Maria, que destinava para cathedral; porém Sancho fez-lhe guerra e depô-lo, pelo que os compostelanos, aproveitando-se das perturbações políticas, ficaram com os bens pertencentes a Braga, e não restituíram o mosteiro de Cordario». Sobre Correlhã, actualmente no concelho de Ponte de Lima, existem nos nossos arquivos alguns documentos deste período que importa aqui revelar. Em 27 de Novembro de 1097, com efeito, Henrique de Borgonha, auto-denominando-se de “Conde Portucalense”, designa as suas possessões de «Província Portucalense».
E, ao que sublinha Damião Peres, «pela primeira vez, à diferenciação toponímica corresponde a diferenciação política, criando-se uma unidade, a província portucalense, prefiguração do estado português e gérmen da nação portuguesa».
Nesse período os concelhos rurais (sujeitos ao Rei) continuavam a preservar, com toda a firmeza, os seus vínculos comunitários. Nota José Mattoso que também diversas comunidades continuavam a manter, nalguns casos, mesmo sujeitas a senhorios particulares, os vestígios de uma arcaica organização. Aquela possessão minhota (Correlhã) adianta este medievalista, era pertença do senhorio do arcebispo de Santiago de Compostela e chegou até nós um outro documento, por sinal datado do século seguinte, que no-lo refere.
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Sobre esta questão, José Mattoso retoma a problemática que já nos anos vinte havia sido abordada, com algum detalhe, por Augusto Ferreira. Sublinhava então este segundo autor, nomeadamente, que «a Galiza nessa ocasião compreendia também a diocese de Braga», sendo o bispo de Iria (Compostela) o senhor temporal de muitas terras nos arredores de Braga e estando encomendado o governo espiritual deste Arcebispado ao Bispo de Lugo.
Entre 1071 e 1093, era Pedro o Bispo de Braga, e dele pode dizer-se o que se regista na “Historia Compostellana” a respeito do bispo Diogo Peláez, Santiago (1071-1088), ou seja, que no seu tempo, «in hoc tempore, apud Hispanos Lex Toletana obliterata est et Lex Romana recepta». Então, com efeito, a liturgia românica substituía já a literatura moçarábica tanto em Braga como na Galiza. Isto registava-se já durante o episcopado de Pedro, portanto num período anterior ao último decénio do século XI.
Sublinha, a propósito, Augusto Ferreira que nos primeiros anos da governação eclesiástica de Pedro seria impossível à Catedral de Braga estar habilitada para, em qualquer das suas dependências, serem celebrados os actos inerentes ao Episcopado. E interroga-se:
- «Todavia quem assegurou ao Padre Ferreira de Figueiredo que provisoriamente se não faria esse culto noutro edifício, que servisse de pró-Catedral? Pois não existia já na cidade a Igreja paroquial de S. Tiago, que por isso se chamou de Cividade?»
Era por ela, com efeito, que passavam grandes magotes de peregrinos, que aí prestavam culto ao Apóstolo, quando por essa via romana (de interior) demandavam Santiago de Compostela.
Esse templo jacobeu, quando se principiou a reedificar a Sé de Braga, era a única igreja existente na cidade restaurada. Tinha o nome de “Sant'Iago da Cividade”, ou seja, a cidade situava-se no local onde se edificou ou reconstruiu tal igreja. Passava a distinguir-se, desta forma, segundo Augusto Ferreira, da outra paróquia de S. Tiago da Sé. Do mesmo período, e não muito distante dali, é a Igreja de Sant'Iago de Cossourado». In Manuel Cadafaz Matos, O Culto Português a Sant’Iago de Compostela ao longo da Idade Média, Peregrinações de homenagem e louvor ao túmulo e à cidade do Apóstolo entre o século XI e século XV, Instituto Português do Património Cultural, Lisboa, 1985.
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