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«Não é, todavia, este limite imposto pelas mediações a que temos de recorrer que tira pertinência ao trabalho com que a imaginação procura reconstituir o passado. A História sempre exerceu sobre os homens um irresistível fascínio. Creio que este fascínio resulta de o Homem estar convencido que pode encontrar no passado algumas das respostas fundamentais acerca de si próprio. Procura-se explicar muito do que hoje é "assim" pelo que ontem foi, e como foi. De facto, a ignorância ou o desprezo do passado correspondem à tentativa absurda ou perigosa de anular a posição anterior ou de querer negar o real. Exprimem um olhar curto, obtuso, grosseiro, sobre a vida. A questão tem alguma coisa que ver com o problema das ideologias conservadoras ou progressivas, que só valorizam o passado, ou só querem alterar o presente, mas é claro que não me desviarei para considerações deste género.
Basta aludir a uma questão que interessa a toda a gente e à necessidade de a inserir numa perspectiva histórica. O que me importa agora, porém, é que a atitude contemplativa permite apreender a realidade como fonte de lucidez, como meio do qual se respira, como base de sustento. Não apenas a realidade de hoje, mas a realidade de sempre.
Descendo agora alguns degraus neste exercício, aproximemo-nos de questões mais próximas daquelas a que estão habituados os historiadores profissionais, para explicar que a atitude contemplativa não se exige apenas para tentar apreender a totalidade sem margens do real, mas também para relacionar as partes com o todo, as moléculas com o universo, os homens com a humanidade, para reunir num só acto a análise e a síntese, a distinção e a composição. De facto, nada tem sentido em si mesmo, mas em virtude da sua relação com alguma coisa. A gama das relações reais ou possíveis, por sua vez, é infinita. Mas o espírito humano aprendeu desde sempre a classificá-las conforme as suas diversas funções. Só este ponto de vista permite resolver os bloqueios de uma história descritiva que, no limite, se veria totalmente ultrapassada pela necessidade de tudo registar. Quando se opta por contar o que aconteceu por causa de um balde de água suja que caiu na cabeça de um transeunte, fosse em 1610 ou noutro ano qualquer, não se pode mais encontrar o caminho certo da pesquisa nem do discurso.
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A solução está, por isso, em definir os conjuntos em que se inserem os dados particulares e os laços que os unem entre si. Sem esquecer os horizontes ilimitados a que já aludi, não posso agora deixar de chamar a atenção para a necessidade da prática contemplativa, mesmo face a campos visuais de horizontes bem definidos, para poder descobrir todas as relações possíveis dos elementos que os povoam e todos os componentes de cada uma das suas parcelas.
Recortada uma área de um campo de observação, terá então de se examinar em todas as suas dimensões, para não perder nenhum dos seus elementos, e reconstituir as suas funções no conjunto. Essa porção do real, por sua vez, terá de se situar perante outros conjuntos, com os quais tenha vínculos funcionais. Os praticantes das ciências exactas que aqui estão sabem isto muito bem. Para nós, historiadores, a definição dos mecanismos e dos conjuntos não é tão simples como no mundo da física, dada a complexidade da acção humana e a sua constante alteração em virtude de factores muito diversos. É preciso ter muita atenção e muita imaginação para não esquecer todos os factores que interferem na História.
Dito isto, parece-me dispensável descer às questões técnicas de que se ocupam largamente os tratados de metodologia histórica. O que importa é que elas resultam fundamentalmente do problema da adequação dos vestígios históricos com o passado no seu conjunto, ou seja, de saber em que medida é que os documentos permitem reconstituir esse mesmo passado. Uma vez equacionado este problema, ocupam-se também dos cuidados que é preciso ter para que tal reconstituição não seja arbitrária.
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A este respeito, bastará dizer três coisas: Primeiro, a tal atitude contemplativa de que falava com tanta insistência, ao ponto de a relacionar directamente com a linguagem poética e com o amor, não se opõe, de modo algum, à atitude racional e científica. Não prejudica a objectividade do conhecimento, antes pelo contrário. Torna a ciência extremamente exigente, e o rigor da observação, incansável. Uma ciência e um rigor sustentados pela paixão de conhecer, quer dizer, pela resposta à intensa sedução que a História exerce sobre o homem. Por isso. quando falo em «conhecer», penso aqui não só na acepção actual da palavra, mas também no seu sentido bíblico que designa o acto do amor. Como dizia um autor cisterciense do século XII, "amor ipse intellectus". O amor é ele próprio uma forma de conhecimento.
A segunda coisa que queria dizer, é que a atitude contemplativa levará, também, a não nos contentarmos com os vestígios escritos do passado. O homem, além de produzir um discurso sobre si mesmo, para uso dos vindouros, discurso esse geralmente muito deturpante, porque nele só têm lugar os chefes, os proprietários e os heróis, deixa muitas outras marcas, cuja eloquência depende justamente da curiosidade e da receptividade do observador.
Os arqueólogos estão habituados a examinar sobretudo essas marcas. Elas estão por toda a parte, encontram-se mesmo à superfície da terra. E no entanto, tal como acontece na arqueologia, só se entregam, só se revelam a quem sabe procurá-las e reconhecer o seu valor, isto é a sua relação com o passado total. Por outro lado, também não se pode confundir o passado com a memória dele, nem sequer com a memória colectiva. Esta baseia-se, de facto, numa reconstituição imaginária, mítica, mesmo quando resulta da transmissão escolar, porque condiciona, muitas vezes, os comportamentos colectivos». In José Mattoso, A Escrita da História (teoria e métodos), Imprensa Universitária, editorial Estampa, Lisboa, 1988.
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