quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

A Mocidade de D. João V. Rebelo da Silva. «Quando valia a pena, S. Rer.ª fechava-se na riquíssima livraria do convento, cobria de letra garrafal quatro cadernos de papel, e disparava sobre a parte adversa uma alegação, que fazia pular as venerandas cabeleiras do desembargo do paço»

Cortesia de leloeirmao

«Nos finais do primeiro quartel Do século XIX, mais precisamente a 2 de Abril de 1822, nasceu em Lisboa, onde também viria a falecer a 19 de Setembro de 1871, o grande polígrafo Luís Augusto Rebelo da Silva. Estudou Humanidades em 1838, ingressando ao mesmo tempo na Sociedade Escolástica Filomática. Seguidamente matriculou-se em Matemática na Universidade de Coimbra, cujo 1º ano frequentou, mas que grave doença o obrigou a abandonar. Mostrando grande propensão para as letras, aos 18 anos estreou-se com o romance histórico “Tomada de Ceuta”. Espírito muito vivo, Herculano franqueou-lhe a Biblioteca da Ajuda, onde o moço escritor se entregou apaixonadamente a investigações e estudos históricos. Assim é que em 1842 publicou o seu segundo romance, “Rauço por Homizio”, a que se seguiu, em 1848, “Ódio Velho não Cansa”, que dedicou a Alexandre Herculano. Mas é ainda neste mesmo ano que surgiu a sua primeira obra de grande fôlego, “A Última Corrida de Touros em Salvaterra”, traduzida em inglês por Edgar Prestage e, em 1852, “A Mocidade de D. João V”, sua obra-prima, que ora se edita.
Uma novela de caracteres e de costumes, cujo plano conserva na pasta há muitos anos, e se tem ido formando e amadurecendo no espírito apesar de outras preocupações, seguirá de perto esta edição da ‘Mocidade’. O fundo histórico, a época da acção, será ainda o reinado de João V, mas de João V mais velho, mais homem, mais absoluto no poder, e mais formado no carácter e nas paixões.

A verdade de um rifão
Ninguém diga: eu desta água não beberei. Não somos nada deste mundo, padre procurador. É verdade, Tomé das Chagas. Mas que quer? Os pecados pagam-se. E eu sem pregar olho toda a santíssima noite para nos sair uma destas! Os nossos padres como estão? Mortificadíssimos! Isto apesar de toda a grandeza de alma sempre chega ao vivo. Decerto! E o excomungado papel, não há meio de lhe acudir? A provisão do desembargo do paço? Não sei, por mais que cisme. É ‘Caesar in Caesare’ É ir de el-rei para el-rei! Como os padres de S. Roque não rirão a esta hora! Pois eles têm nisso alguma coisa? Tudo, irmão Tomé; Vossa Mercê não percebe? A pedra veio daquelas mãos; e os padres da Companhia atiram certo. Não importa! O jogo não acabou, e até ao lavar dos cestos é vindima…

Cortesia de leloeirmao

Ora esta! Com que então os jesuítas andam no forro desta heresia? Andam em tudo, irmão Tomé. Nestes reinos nada se faz que eles não cubram com a sua roupeta. Parece impossível! Até no desembargo do paço?!... Em toda a parte. A Companhia aparece à cabeceira de el-rei, se está doente, no seu oratório, se reza, á mesa dos tribunais, se despacha… Mas então é como Deus, está em toda a parte? Sabe e aconselha tudo. Só na Santa Inquisição (maldita, jdact) é que não meteu por ora o braço, nem há-de meter, enquanto florescer a Ordem dos Pregadores, instituída para confusão dos hereges e hipócritas… Belo texto para o meu primeiro sermão na capela real. Que me refutem os seus casuístas e doutores!... Só lhe digo, irmão Tomé das Chagas, que o plano dos jesuítas, o negro e maldito plano deles…Jesus da minha alma! É abolir a Santa Inquisição (maldita), e enterrar nas suas ruínas a Ordem de S. Domingos. A inveja rala-os. Por isso as profecias são tantas, e o povo anda inquieto. Sabe V. Reveren.ª o que dizem? Que há-de nascer em Babilónia o Anticristo! E é certo que para as bandas da Sé já apareceu um lobisomem; que ao pé de Santa Engrácia se queixam os vizinhos de verem sair à meia-noite… Um … parvo como eles e V. Mercê. Pois atreve-se com essa chocha cabeça a querer perscrutar os altos mistérios de Deus? O Anticristo nasceu. Santa Bárbara! S. Jerónimo! ‘Abrenúncio! Vade retro!’ Cale-se, homem. Que escarcéus são esses? A culpa é minha. Para que lhe estou eu a falar de coisas superiores à sua razão? Deixemo-nos disto. Mas a provisão, esta pedrada na cabeça, havemos de ficar com ela? Uma esmolinha por alma dos fiéis defuntos, minha devota! gritou o sr. Tomé, interrompendo ‘ex-offício’ o diálogo, já cortado pela súbita meditação em que o padre mestre se abismara.
Enquanto este, preocupado, passeia falando só, e aquele apara a esmola na bandeja mareada, observemos de perto os protagonistas da cena.

Cortesia de diasquevoam

Principiaremos pelo mais graduado.
O mestre Fr. João dos Remédios, da Ordem de S. Domingos, ex-definidor e digníssimo procurador do convento de Lisboa, era um frade de conceito na corte e na igreja. A opinião dos eruditos vacilava entre ele e o pe. Chagas, pregador de grande fama. Se o pe. Chagas limava melhor os sermões e possuía o segredo de comover o auditório, Fr. João não conhecia émulo na veemência dos afectos e nas explosões da voz sonora. Formado ‘in utroque jure’, no foro granjeara a reputação de um segundo Pegas.

Quando valia a pena, S. Rer.ª fechava-se na riquíssima livraria do convento, cobria de letra garrafal quatro cadernos de papel, e disparava sobre a parte adversa uma alegação, que fazia pular as venerandas cabeleiras do desembargo do paço, enquanto as unhas ao douto patrono contrário, roídas até aos sabugos, atestavam o seu dissabor». In Rebelo da Silva, A Mocidade de D. João V, volume I, Livraria Chardron de Lello & Irmão Editores Porto.

Cortesia de Lello & Irmão/JDACT