sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Jaime Cortesão: Política, História e Cidadania (1884-1940). Parte I. «Uma personalidade singular que ocupou lugar proeminente na cultura política e na cultura histórica do seu tempo, sobretudo pela afirmação de um combate político e no sentido de reavivar a consciência histórica e cívica»

JDACT

Com a devida vénia a Elisa Neves Travessa, publico algumas palavras do Prémio de História Contemporânea da Universidade do Minho, edição 2002.

I - Os primeiros voos da Águia. A produção literária.
«Na tentativa de avaliar a influência que Cortesão exerceu na cultura portuguesa do século XX não podemos fixar-nos apenas na produção histórica do autor, embora mais conhecida e divulgada que a obra literária. Esta tem sido votada a algum esquecimento e, não obstante alguns estudos de reconhecido valor, não foi alvo de uma divulgação efectiva. No entanto, conhecer o Cortesão poeta, contista, memorialista e dramaturgo é tarefa essencial para compreender a complexa personalidade do homem e do cidadão.
Acresce ainda que o estudo da produção literária de Cortesão, cuja fase inicial e mais produtiva se pode situar nos primeiros anos da República, se revela fundamental, tanto para a compreensão da sua obra histórica, como para o conhecimento das temáticas e preocupações essenciais e o esclarecimento do papel interveniente que assumiu em projectos e iniciativas de natureza cívica, educativa e literária. Conhecer a trajectória destes primeiros voos de Cortesão no domínio da literatura é tarefa imprescindível para compreender os voos paralelos e futuros por outros céus.

O grupo fundador da revista «Seara Nova», reunido em Abril de 1921 em casa do Sr. José Leal.
Da esquerda para a direita, de pé:
pároco do Coimbrão, Teixeira de Vasconcelos, Raul Proença e Câmara Reis;
sentados: Jaime Cortesão, Aquilino Ribeiro e Raul Brandão
Cortesia de instituto-camoes

 
Entre a Medicina e a Arte
Cortesão, filho de António Augusto da Silva Cortesão e Norberta Cândida Zuzarte, teve uma infância marcada pela sensibilidade poética da mãe, que certamente influenciou as suas escolhas futuras, e pela formação e actividades do pai, médico, filólogo e professor da Escola Normal de Coimbra.
Jaime Cortesão nasceu em 29 de Abril de 1884 em Ançã, concelho de Cantanhede. A partir de 1890 passou a viver com a família em S. João do Campo, concelho de Coimbra. Nesta cidade frequentou o liceu, onde completou os estudos secundários. Inicia então um longo percurso pelo ensino superior que se prolonga entre os anos de 1898 e 1910, com algumas interrupções. Encontramos registos de matrículas nas Faculdades de Teologia, Direito, Matemática e Filosofia da Universidade de Coimbra. O primeiro registo diz respeito à matrícula em Grego, cadeira anexa à Faculdade de Teologia, ministrada por Manuel de Azevedo Araújo e Gama. A este interesse pelos estudos clássicos não é alheia a influência paterna que o próprio mais tarde confirmará.
No ano lectivo de 1899-1900, embora hesitando entre as Belas-Artes e o Direito, Jaime Cortesão opta por este último curso e matricula-se na respectiva Faculdade. A ambivalência entre o Direito e os Estudos Clássicos, determinada pela herança paterna, estará presente na pluralidade de vocações manifestadas ao longo da sua formação universitária. O interesse pelo Direito deriva provavelmente da necessidade de obter uma formação jurídica capaz de consubstanciar um papel interveniente na sociedade do seu tempo, na defesa da justiça social e por ela da liberdade. Também as questões da retórica, da eloquência e da oratória teriam despertado no jovem estudante de filologia o interesse pela formação em Direito. Contudo, não seria esta a sua última opção.

Cortesia de almaviva 
A desistência da frequência do curso, passados dois anos, poderá relacionar-se com algum desalento face ao ambiente pedagógico vivido na Universidade de Coimbra neste período. O perfil corporativo, clerical, dogmático e tradicional manteve-se nesta instituição, mesmo após a implantação do regime liberal. Só durante a I República os Governos Provisórios promulgaram legislação que visava abolir certas práticas e cerimónias, como sejam, os juramentos católicos obrigatórios de estudantes e professores. Alguns dos docentes e muitos estudantes adoptaram posturas contestatárias e inovadoras, perfilhadas pelo jovem Cortesão, nos anos que antecederam o regime republicano. Reivindicações marcadas, na maior parte dos casos, pela defesa de princípios e valores republicanos e democráticos, contaminadas pelo ambiente anarquista e libertário de grande parte do escol estudantil.
Não obstante estas posições reformadoras a Universidade de Coimbra continuava a ser, no essencial, uma instituição e uma comunidade conservadora no plano dos conteúdos programáticos, nos métodos e estratégias de ensino, no relacionamento com os sectores político e religioso e no perfil dos docentes e de uma parte considerável da população escolar. Este ambiente proporcionou um crescendo das contestações estudantis nos anos que antecedem a instauração da I República.


Cortesia destatic.publico
Nas opções divergentes, face ao ensino oficial instituído, veiculadas no discurso contestatário estudantil a que Cortesão se vincula, estão presentes as sementes da futura acção pedagógica que empreenderá. Em ebulição no seu espírito estaria, embora sem formalização específica, a crença nas potencialidades regeneradoras da educação, como premissa essencial para a modernização, democratização e laicização do ensino e, por inerência, da sociedade portuguesa. Princípios vinculados ao discurso pedagógico republicano e nas palavras de alguns docentes que contestavam o ensino ministrado na Universidade de Coimbra e pugnavam pela sua reforma institucional e pedagógica.
Cortesão continua a frequentar a Universidade até ao ano lectivo de 1903-1904. Regista nova matrícula no 1o ano do curso de Direito em 1900, nas três cadeiras obrigatórias. Entre os seus professores encontram-se os nomes de Avelino César Augusto Maria Calisto, Álvaro da Costa Machado Vilela, lente substituto de Exposição Histórica do Direito Romano, e Guilherme Alves Moreira, grande impulsionador do estudo científico do Direito Civil em Portugal. Depois de interromper os estudos por um ano, Cortesão opta pela matrícula na Faculdade de Matemática, como aluno ordinário, frequentando as duas cadeiras obrigatórias do 1º ano do Curso Geral de Matemática e a Cadeira Subsidiária de Desenho, leccionada pelo então Bacharel José Luís d'Andrade Mendes Pinheiro. Não conhecemos as motivações de Cortesão para a escolha deste curso. Podemos apenas interpretá-la como um afastamento face ao estudo do Direito e à área de letras (Grego) para se aproximar da área científica (Medicina). Por outro lado, não restam também dúvidas relativamente ao desalento que manifestou face aos métodos de ensino praticados na Universidade de Coimbra. Este facto teria contribuído para que orientasse a sua formação académica por caminhos tão diversos.

Cortesia de arquivohistoricomadeira
No ano lectivo de 1902-1903, em simultâneo com a frequência do curso de Matemática, matricula-se em todas as cadeiras do curso de Filosofia, como aluno voluntário. Estes cursos tinham cadeiras comuns, é o caso de Álgebra Superior, 2ª cadeira do curso de Filosofia, que os alunos frequentavam na Faculdade de Matemática. Pela análise do seu sinuoso percurso académico julgamos poder considerar que a frequência de dois anos (1902-1904) na Faculdade de Filosofia se refere não à matrícula no Curso Geral mas, sim, nos dois primeiros anos do Curso Preparatório de Medicina. A confirmar esta hipótese acrescenta-se o facto de Cortesão frequentar o Curso de Filosofia na classe de aluno voluntário, e dos dois primeiros anos do Curso Preparatório para Medicina coincidirem com os do Curso Geral da Faculdade de Filosofia.
Para além disso, Cortesão matricula-se como aluno voluntário na cadeira de Álgebra da Faculdade de Matemática no ano lectivo de 1903-1904, cadeira obrigatória, como referimos, do lº ano do curso de Filosofia, e como tal também do Curso Preparatório de Medicina.

Cortesia de livrariapasargadamultiply
A inflexão nos estudos universitários - do Direito para a Medicina -, denuncia a necessidade de enveredar pelos caminhos de uma formação académica que lhe permitisse contribuir efectivamente para o progresso da humanidade no sentido do bem-estar e da harmonia física e espiritual, «em nome da Verdade e da Justiça». Um certo espírito de missão e a influência paterna também não seriam alheios a esta opção e à determinação pela matrícula no curso de Medicina na Escola Médico-Ciúrgica do Porto, que frequentou até 190920. Consideramos terminado o seu percurso académico com a finalização deste curso, mas não podemos encerrar o âmbito da sua vocação. Cortesão exerceu durante muito pouco tempo medicin e as classificações obtidas, durante a frequência do curso, denunciam que esta formação foi mais circunstancial que vocacional. Para além disso prenunciam o percurso multiforme de Cortesão e a preferência por outras áreas do conhecimento, como provam a sua produção literária e a dedicação à investigação histórica». In Elisa Neves Travessa, Jaime Cortesão, ASA Editores, 1ª edição, Setembro de 2004, ISBN 972-41-4002-4, obra adquirida e autografada em Fevereiro de 2006.

Continua.

Com amizade.
Elisa Neves Travessa/Edições ASA/JDACT