quinta-feira, 7 de julho de 2011

A. H. Oliveira Marques. A Sociedade Medieval Portuguesa: A Mesa. «Num país como Portugal, o peixe situava-se também na base da alimentação, especialmente entre as classes menos abastadas. O consumo frequente de peixe pela nobreza e pelo clero provinha das prescrições religiosas. Nesses dias, os pratos de peixe ou de marisco substituíam, ao jantar e à ceia, os pratos de carne»

Cortesia de wikipedia 

A Mesa.
«Tomemos alguns exemplos de receitas que, embora da primeira metade do século XVI, se não devem distanciar muito das medievais, excluindo o emprego abundante das especiarias.

  • «Receita da vaca picada em seco»
Tornarão a vaca - a polpa sem ossos e não da posta de fora, porque é muito dura e picá-la-ão muito picada e deitar-lhe-ão cheiros, segados assim propriamente como para salada e sua cebola muito miúda. E deitar-lhe-ão, em lugar de manteiga, azeite muito bom, que não tenha nenhum saibo; e, depois de afogada, temperá-la-ão com seu vinagre. E não há-de levar mais água que lavarem-na antes de a picar, e então, torná-la a lavar, que vai assim com aquela água, porque lhe não deitam mais água; e, depois que começa a ferver, temperada com vinagre e com seu sal e os adubos (cravo e açafrão e pimenta e gengibre), há-de se cozer, que não fique caldo, senão assim como de lampreia, então com suas fatias de baixo.
  • «Esta é a receita da galinha cozida e ensopada»
Tomarão esta galinha e cozê-la-ão com salsa e coentros e hortelã e cebola; então, deitar-lhe-ão sua tempera de vinagre e, depois dela temperada e cozida, tomarão este caldo e deitá-lo-ão em uma pícara e pô-lo-ão a ferver em outra; e deitar-lhe-ão dentro, na mesma panela, meia dúzia de ovos. E, com este mesmo caldo dos ovos, tomarão dois pares de gemas de outros ovos e batê-los-ão e farão um caldo amarelo; e então tomarão a mesma galinha e pô-la-ão num prato, com suas fatias de pão de baixo; e depois desta galinha posta nas fatias, pôr-lhe-ão os ovos que estão cozidos, por de redor, e então deitar-lhe-ão o mesmo caldo amarelo dos outros ovos, por riba, e deitar-lhe-ão canela pisada por riba.


Cortesia de wikipedia

Num país como Portugal, o peixe situava-se também na base da alimentação, especialmente entre as classes menos abastadas. O consumo frequente de peixe pela nobreza e pelo clero provinha das prescrições religiosas: cerca de sessenta e oito dias no ano eram de abstinência obrigatória de carne para todos os católicos. Nesses dias, os pratos de peixe ou de marisco substituíam, ao jantar e à ceia, os pratos de carne. Porque as proibições eram rigorosas: em tempo de jejum, nada de carne, ovos, queijo, manteiga, banha, vinho e até peixe gordo! Ervilhas, fruta e peixes pequenos recebiam as preferências da Igreja.

Um dos peixes mais consumidos pelos portugueses, na Idade Média, parece ter sido a pescada (peixota), presente em quase toda a documentação que especifique variedades piscatórias. Sardinha, congros, sáveis, salmonetes e lampreias viam-se também com frequência nas mesas de todas as camadas sociais. Ruivos, pargos, atuns, trutas, solhos, bizugos, cações, rodovalhos, gorazes e muitas outras espécies eram objecto da culinária de então. Também se comia carne de baleia e de toninha. Mariscos (como amêijoa e berbigão) e crustáceos (como lagostas e caranguejos) eram frequentes.
Conservou-se até nossos dias um curioso «caderno da despesa que fez o almoxarife no pescado para el-rei no ano de 1474».

Cortesia de wikipedia

Estava D. Afonso V a residir em Santarém. E quase todos os dias se compravam peixes para a mesa real, que as peixeiras traziam à dúzia, ao cento ou até à unidade. As qualidades de peixe eram poucas: apenas linguados, azevias e salmonetes, alternando com um único marisco: ostras. Santarém não era Lisboa, havia menos peixe; ou o rei preferiria os indicados. O peixe era servido à mesa real, frito ou em empadas. Mencionam-se no caderninho «sertãs para frigir», alqueires de farinha para polme ou para a massa das empadas e, como «adubos» (temperos), unicamente laranjas (azedas, entenda-se), salsa, azeite e vinagre. As empadas não eram feitas na cozinha real mas sim por uma padeira. No canhenho assentam-se também as verbas pagas à «mulher de Jorge Esteves Lula» ou a Margarida Luís pelo trabalho de escamar e lavar o peixe.
O Tratado de Cozinha» do século XVI inclui apenas uma receita para peixe:
  • «Receita da lampreia»
Tomarão a lampreia, lavada com água quente, e tirar-lhe-ão a tripa sobre uma tigela nova, para que caia o sangue nela; e enrolá-la-ão dentro naquela tigela e deitar-lhe-ão coentros e salsa e cebola muito miúda. E deitar-lhe-ão ali um pouco de azeite e pô-la-ão coberta com um talhador; e, como for muito bem afogada, deitar-lhe-ão muito poucochinha água e vinagre e deitar-lhe-ão cravo e pimenta e açafrão e um pouco de gengibre». In A. H. Oliveira Marques, A Sociedade Medieval Portuguesa, Aspectos da Vida Quotidiana, A Esfera dos Livros 2010, ISBN 978-989-626-241-9.

Cortesia de Esfera dos Livros/JDACT