terça-feira, 5 de julho de 2011

O Livro de Cale. Carlos Cordeiro: Parte 3. «A borrasca, conforme surgiu, assim se extinguiu. Mas, o cenário traduzia o estado caótico do solo e da flora. De onde estava, Bernardo apenas conseguia vislumbrar uma débil luminosidade, ao longe, no vale. Montou Lucus e afastou-se do pesadelo»

Cortesia de guardadorderebenhos

Floresta de Sobressalto
Parte 3
«Porém, alheou-se rapidamente da ideia, ao escutar por perto o silvo de um apetrecho, que rompia o ar, na sua direcção. Esquivou-se ao acaso. Lucus relinchou de esforço e de dor. A nova investida, Bernardo respondeu de imediato.Tentou apoderar-se da arma uma e ourtra vez. Em vão. À sua direita, era, então, mais notória, a presença de outros cavaleiros. Escapou-se de um ramo, desviou-se de arbustos, evitou um calhau. Protegeu-se da chuva, puxando a capa para o rosto. Não sossegou. Segurando-se a Lucus com todas as suas forças, espevitou-o até à exaustão, sentindo o esforço do animal. Subitamente, sentiu o crucifixo balançar no seu peito, animando-lhe a memória. Pegou nele de imediato e puxou-o para si, fazendo-o soltar-se do fio. Olhou de soslaio, ergueu o braço e arremessou-o com ganas na direcção dos perseguidores...
Pareceu eterno aquele momento suspenso e, no instante seguinte, após uma explosão, uma aura de energia com impressionante ardência envolveu e asfixiou tudo em seu redor. As coisas perderam forma, imiscuindo-se num espaço indistinto. Sem saber onde estava, Bemardo, mesmo cego de esforço, revoluteou a montada, ao encontro dos oponentes. O alarde da refrega tornou-se confuso.

Cortesia de arautos

De forma lenta, mas precisa, o monge levou a mão à espada. O tempo abrandara, o espaço parecia exíguo, tudo se envolvia num sono sem sonho que tardava em passar. Apenas o olhar de Bernardo, louco de temor e pleno de fúria, se cravara em todas as direcções, procurando pontos de referência.Tudo à volta era confuso e baço. Um vazio sagrado abafara as presenças demoníacas que, imperceptíveis, soltaram queixumes de agonia, parecendo afastar-se precipitadamente. Longe, os espectros desapareciam num declive. Pouco depois, a chuva regressaria, impiedosa e torrencial.
Bernardo recuperou lentamente a serenidade, tentando perceber o quê ou quem o haúa provocado com tanto fulgor e de forma tão singuIar e, talvez, fantástica. Ao guardar a espada, perguntou-se de onde viriam as faúhas que o haviam perseguido durante o frenético galope e se não teria visto qualquer objecto metálico por perto... Indagou-se, mas não teve resposta. Voltou a cobrir o corpo com a capa, protegendo-o da tempestade, ao mesmo tempo que levava a mão ao peito, tentando inquirir a alma, qual guia místico. Mas não obteve qualquer resposta nem indício inteligível. Ainda duvidava da realidade.Tentou reconhecer um ínfimo pormenor, que denunciasse os infernais agressores, mas não recordava mais do que silhuetas fluidas e mórbidas. Porém, que semelhança assustadora com a sua própria imagem. Inquietava-se. «Porquê figuras tão obscuras e sinistras? Porgue não vira o cintilar de uma lâmina?», perguntava- se.
Tocou no seu corpo. Não tinha feridas, mas faltava-lhe algo no peito. O medalhão, a dádiva de Henrique, tinha desaparecido. Contudo, o crucifixo, ofertado por Orlando, havia cumprido a sua missão. O seu efeito, porém, apenas seria verificado, quando Bernardo, ao tentar orientar-se, fez Lucus recuar e deparou com três cadáveres, meio ocultos por arbustos perto de uma vala.

Cortesia de europaamerica

Com um misto de espanto e horror, descortinou os corpos despedaçados, mercê da deflagração provocada pelo objecto que lhes havia arremessado. Percebeu então que o risco que correra tinha sido real. Apesar de se assemelharem a sombras ou espectros, os agressores eram, na verdade, homens de carne e osso. Se, antes, a fúria dos elementos lhe havia sugerido estar sob um prenúncio espiritual, agora, perante aquele testemunho, sabia que o ódio profano dos homens também lhe enredava o destino.
Pelas vestes, os cadáveres seriam cristãos. Entre o dever de enterrar os corpos e o ressentimento que dele se apossava, o monge optou por confiar os corpos à sua morada eterna e encomendar as almas a Deus. Porém, os elementos revelaram-se adversos e mostraram toda a sua repulsa através de um dilúvio que se abateu, novamente, sobre o lugar. Com uma fúria insana , a força da torrente de água impeliu os corpos outeiro abaixo, exigindo a Bernardo toda a sua força e destreza para não ser também arrastado.
A borrasca, conforme surgiu, assim se extinguiu. Mas, o cenário traduzia o estado caótico do solo e da flora. De onde estava, Bernardo apenas conseguia vislumbrar uma débil luminosidade, ao longe, no vale.
Montou Lucus e afastou-se do pesadelo». In Carlos Cordeiro, O Livro de Cale, Publicações Europa-América 2010, edição nº 103583/9344.

Cortesia de Publicações Europa-América/JDACT