Plano e perspectiva do sítio da Praça do Piro, 1768
Cortesia de foriente
Diário dos sucessos da viagem que fez do Reino de Portugal para a cidade de Goa, principiada aos 21 de Abril de 1773
Acerca do género literário
«A titulação que actualmente se depreende do rótulo do único manuscrito hoje conhecido do ‘Diário’ de D. António José de Noronha, coloca o texto na grande categoria da «literatura de descoberta e expansão», apesar de abrir várias possibilidades de interpretação quanto ao género em que se integra a obra.
Luís de Albuquerque notava com certa ironia que:
- [...] os pilotos e os navegadores que escreveram esses textos não podiam ter, como é evidente, qualquer preocupação com os historiadores que, séculos depois, desejariam dar um rótulo seguro aos seus trabalhos; nem sequer podiam adivinhar que eles se esforçassem por espartilhar os seus escritos em cinco tipos de classificação.
Todavia, a definição da categoria e do género dizem respeito não a uma simples titulação mas também sugerem a hermenêutica oportuna para uma decifração correcta da obra e da sua validade testemunhal como texto literário e/ou como documento de carácter historiográfico e náutico.
O título desta obra de D. António José, ‘Diário dos sucessos da Viagem que fez do Reino de Portugal para a cidade de Goa, Dom António Jozé de Noronha, Bispo de Halicarnasse’, é significativo na dimensão de uma classificação tipológica já que indica tratar-se não do documento oficial relativo a uma viagem colectiva mas do registo de uma viagem em que a personagem principal, identificável neste caso com o autor, ocupa um papel significativo, quer na escolha das notícias e no relato dos feitos, quer no desenrolar de determinados acontecimentos.
Cortesia de foriente
A divisão temporal, determinada pelo recurso ao dia marca profundamente a relação enquanto estrutura aparentemente fixa, mas que ao mesmo tempo oferece ao Autor a possibilidade de organizar os vários núcleos narrativos de forma quase independente, com a consequente possibilidade de dilatar o espaço conforme os assuntos ou de introduzir temáticas secundárias ou até alheias à matéria de base.
A fragmentação da narração com base no dia a dia insere o texto na categoria «diário», enquanto que o facto de o manuscrito relatar uma bem determinada experiência de navegação e a circunstância de ter sido escrito a bordo, insere a obra no género «diário de navegação», ou em sentido mais amplo na de «diário de bordo». O diário de bordo e o diário de navegação foram bem definidos nas suas características de base e na sua intencionalidade. Todavia, como demonstramos recentemente, ao lado dos textos pertencentes a géneros que poderíamos chamar «puros» ou «técnicos», aparecem outros textos cujas características denotam e presença de componentes híbridas. Na rígida definição técnica, o «diário de bordo», ou o «diário de navegação», deveriam representar o resultado concreto da obra de um personagem, encarregada oficialmente de registar o mais objectivamente possível uma rota bem estabelecida e o desenrolar de uma determinada viagem. Nos últimos tempos foi, porém, levantada a questão de que ao lado deste tipo de registo oficial das viagens das armadas diplomáticas, militares ou comerciais, ser preciso tomar na devida conta também os numerosos documentos elaborados por particulares que por motivos muito diferentes efectuam uma descrição pormenorizada não só da própria experiência, mas também de uma dada viagem marítima e dos problemas relativos aos mais variados aspectos técnicos daquela navegação.
Qual é a validade que é, porém, lícito atribuir a estes textos e qual pode ser a titulação que é oportuno reservar a estas obras que frequentemente transmitem uma informação comparável à conservada nos documentos oficiais, documentos que em muitos casos são hoje desconhecidos?
Goa
Cortesia de goatourismplanet
Pelo que nos é dado saber, o «diário de bordo», oficial do navio ‘Mariana Vitória’ que em 1773 efectuava uma das inúmeras viagens da carreira da Índia, não é actualmente conhecido. O que chega até aos nossos dias é, porém, um texto redigido autonomamente por um passageiro embarcado naquele navio. Um particular que não se sente, obviamente, sujeito a um determinado regime e, consequentemente, que não respeita os cânones de um dado género de escrita contemplado pela organização administrativa e burocrática. Todavia, D. António José de Noronha, com a sua bem conhecida meticulosidade, regista dia a dia a viagem começada em Lisboa em 20 de Abril de 1773 (momento do embarque) e concluída em 25 de Janeiro de 1774 com a entrada na barra de Goa. No caso que nos interessa trata-se também de uma personagem especial, já que o seu duplo estatuto de fidalgo e de bispo ‘in partibus’ o coloca numa posição privilegiada, quer no que diz respeito ao regime de vida num navio comercial, quer no que diz respeito à informação relativa à navegação e aos problemas de relacionamento com as sociedades com que a equipagem e os passageiros entram em contacto durante as escalas programadas ou ocasionais». In D. António José de Noronha, Diário da Viagem, Edição e Introdução de Carmen Radulet, Fundação Oriente, Biblioteca Nacional, 1995, ISBN 972-9440-51-4, ISBN 972-9440-50-6 (Col.).
Continua
Cortesia da Fundação Oriente/JDACT