sábado, 3 de dezembro de 2011

Maria Ana M. Guedes. Interferência e Integração dos Portugueses na Birmânia, ca 1580-1630. Parte VII: Reis e Monges. «A economia, predominantemente agrícola, não assegurava ao Estado rendimentos estáveis. Como afirma Aung-Thwin, a terra à semelhança da sociedade repartia-se pelo sector governamental, privado, e religioso»

Cortesia de foriente

Reis e Monges. Notas sobre a Birmânia além dos Portugueses
«Autoridade régia e centralização foram limitadas por condicionalismos étnicos e geográficos, que juntamente com as condições reais do trono se reflectiram numa organização social, económica e administrativa bem caracterizada. Tal como o fundo conceptual religioso que orientou ‘sangha’ e trono, essa organização manteve traços de continuidade e contribuiu para a descentralização:

A sociedade dividia-se essencialmente em três grupos de estatuto em princípio hereditário. Os ‘ahmudam’, soldados, servos, e administradores ao serviço da Coroa, estavam isentos de capitação. Os ‘athi’, trabalhadores por conta própria, artesãos, comerciantes e agricultores de terras distantes da capital, estavam sujeitos à capitação mas isentos de serviço militar regular. Os ‘kyun’ eram servos por escolha, dívidas ou aprisionamento de guerra. Entre eles estavam os ‘paya kyun’, servos da religião, geralmente doados ao ‘sangha’. Trabalhavam nas terras e nos mosteiros budistas, pelo que estavam isentos de capitação e de prestação de serviços ao rei.

O sistema administrativo funcionava como uma construção terrena feita à imagem do cosmos. No centro ficava a capital que com os seus subúrbios era governada directamente. Cercavam-na unidades políticas regionais, administradas por governadores subordinados ao rei dos reis, e cuja distância da capital determinava o grau de sujeição à autoridade central. Sob a autoridade dos governantes locais, ou sub-reis que tinham poder civil e militar, estavam outros chefes, geralmente hereditários, o envolvimento entre os chefes político-administrativos é simbolicamente apresentado por Hagesteijn, através do conceito indiano de ‘mandala’, círculos de reis. Alguns governantes locais eram príncipes de sangue real, o que os isentava do pagamento anual à Coroa imposto aos outros sub-reis.
Cortesia de allstarsviaggi.it

Constituíam considerável obstáculo à centralização por arrecadarem o rendimento regional e por serem potenciais rivais do rei supra-regional, porque candidatos ao trono em virtude desses laços sanguíneos. A situação, que nos inícios do séc. XVII se exteriorizou à morte de cada monarca, era agravada pelo facto de a sucessão não ser exclusivamente patrilinear.
A somar a esses factores de descentralização, o exército manteve-se desorganizado até à segunda década do séc. XVII. Apesar de nas grandes cidades permanecerem tropas régias (os referidos ‘ahmudam’), da possibilidade de assistência eventual dos ‘athi’, e da incorporação esporádica de outros elementos (como prisioneiros de guerra, mercenários, e gentes recrutadas nas regiões de baixos recursos económicos) não havia um exército efectivo numeroso.
Finalmente a economia, predominantemente agrícola, não assegurava ao Estado rendimentos estáveis. Como afirma Aung-Thwin, a terra à semelhança da sociedade repartia-se pelo sector governamental, privado, e religioso. A propriedade régia era cultivada pelos ‘ahmudam’, a privada pelas famílias ou vilas a que pertenciam, e as religiosas pelos ‘paya kyun’ doados ao ‘shangha’.Era em grande parte dos rendimentos agrícolas que dependiam as finanças régias, pelo que as muitas terras doadas aos monges, ou aos sub-reis locais como forma de recompensa, favoreciam a desorganização económica. Outra fonte de rendimentos era o comércio, tanto trocas inter-regionais como exteriores estavam sujeitas a impostos, que nem sempre eram arrecadados pelo Estado supra-regional. A dificuldade de acesso aos rendimentos advindos do comércio marítimo fez-se sentir até ao séc. XVI nos centros políticos interiores, devido ao distanciamento e falta de controle sobre os chefes regionais do litoral.

Cortesia de vacanzefai

A situação alterou-se em meados do séc. XVI, quando a capital birmane se fixou em Pegu, e também na segunda década do séc. XVII, pois, apesar do retorno da capital para a região interior, foi reforçada simultaneamente a administração central. Estou em crer que no caso do Arracão, o controle dos rendimentos do comércio marítimo foi facilitado quer pela sua menor extensão quer pela sua posição costeira. Como nota Hagesteijn, houve centros regionais que se desenvolveram rapidamente e demonstraram ser mais sólidos que as organizações políticas supra-regionais, sobrevivendo à margem da fluidez manifesta no desaparecimento e reaparecimento daquelas. Esta realidade permaneceria além do séc. XV, podendo aplicar-se com particular acerto ao Arracão. No entanto, também aí as concepções ideológicas do poder constituíam entrave à centralização». In Maria Ana Masques Guedes, Interferência e Integração dos Portugueses na Birmânia, ca 1580-1630, Fundação Oriente, 1994, ISBN 972-9440-28-X.

Cortesia da Fundação Oriente/JDACT