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«(…) Os comunistas que ocupavam herdades e
quintas vindos da planície onde as perdizes esvoaçavam gritando e eu supunha a
minha mãe no meio delas a esquivar-se ao meu pai. Leva as tuas coisas para o
meu quarto amanhã, uma empregada a quem o meu avô, sem se ralar connosco,
filava o pulso. Chega cá, trancava-se com ela na despensa numa avidez de
canário e saía a compor o botão de cobre sem lhe saber o nome ou se importar
com a chávena da minha avó contra o pires, os tucanos giravam em busca do vento
da fronteira e a gente no meio das leiras devastadas na casa em que apesar de
igual tudo principiava a faltar-lhe, as criaturas dos retratos. Quando é que
morres tu?, oferecendo-nos garrafas de vinho e um riso apagado, a sombra da
pereira anulava-nos os corpos antes do começo da noite, a minha mãe tentava
fugir com a caixa pequena e o meu pai a empurrá-la com o cavalo. Para dentro, como
se enxotasse um bicho, a única mulher que nos sobrava porque um silêncio de
abandono na cozinha, as camas das empregadas por fazer, os pratos e os copos no
lava-loiças sem um pano que os limpe e a casa no meio das ruínas que os
comunistas deixaram, ovelhas e vacas que fomos obrigados a abater e nos
observavam aceitando, pássaros (não os tucanos da lagoa, não milhafres, outros
mais gordos, maiores, rasgando-lhes a pele inchada com as unhas e o bico), um
gato a farejar uma lata de não sei quê no escritório e os baús silenciosos dado
que a minha mãe imóvel lá em cima, pensando o quê, planeando o quê, desejando o
quê, não sei quem você era senhora, uma ocasião pegou-me na cara, tive medo que
me desse um beijo. Chega cá e graças a Deus não me deu um beijo, largou-me
desgostosa de mim, quem me garante que não nasceu na vila com os restantes
espectros e não passava de um fantasma como eles, uma ausência de olhos a
espreitar dos postigos ou uma ameaça a perseguir-nos da matéria sem carne de que
as trevas são feitas de modo que não acredito que tenha nascido de si, o meu
irmão talvez postado diante das molduras a tornar-se retrato, não escutando o
relógio nem o vento no milho, quer dizer as folhas amarelas agora que só nós
dois aqui onde tudo apesar de igual nos falta e na cave, na adega, nos arcos da
latada me acontece sentir uma chávena num pires ou um cavalo a puxar uma argola
respirando com força, em torno os montes ao Deus dará e o pedaço de celeiro que
resiste em cujo ângulo um texugo ou uma doninha se ocultavam ao mínimo som
porque tudo receava tudo naquele deserto parado, inclusive os gritos dos
tucanos repetindo sem descanso o que eu não percebia conforme não percebi o meu
pai quando adoeceu há dois anos e exigiu que o deitássemos na cama do sótão na
qual nunca dormiu e em que a roupa da minha mãe se pendurava de grampos, havia
um Cristo que se compra nas feiras torto na parede, a tábua de passar a ferro
com uma camisa do meu avô e o meu pai para a camisa. Vá-se embora o meu pai. Deixe-me
sozinho com ela não com o meu irmão nem comigo, sozinho com ela, uma palavra
que me escapou até me aproximar da sua boca, ia jurar que voltei ou não. Voltei,
enganei-me, continuava a escapar-me, continuaria a escapar-me, o meu pai não
era um Cristo que se compra nas feiras, era um homem ordenando a uma empregada
da cozinha. Leva as tuas coisas para o andar de cima amanhã e a empregada sem
coragem de desobedecer levantando-se a alisar a blusa incapaz de negar-se. Largue-me,
a minha mãe com dezassete ou dezoito anos se tanto que se lavou a chorar para
ele, se calçou para ele, se arranjou para ele a equilibrar as lágrimas, quem
habitou aqui antes de nós e não nos procura como as pessoas da sala, esqueceu-nos
e ao esquecer-nos deixámos de existir, não somos, não éramos, não chegámos a
ser, a minha mãe não foi, eu não sou, o meu irmão não é e contudo o meu pai a
preveni-la». In António Lobo Antunes, O Arquipélago da Insónia, Publicações
don Quixote, Leya, 2008, ISBN 978-972-203-694-8.