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«(…) Delas, Isabel recordava-se
agora, que via como o diabo a tentava naquele homem! Porque aquele que nela fixava
os olhos tinha um brilho especial. O cabelo de um castanho acobreado cortado a direito
pela altura do ombro, uma franja que deixava ver os olhos negros mas grandes e atentos,
o queixo quadrado, o nariz pequeno e um pouco curvado, o corpo forte e jovem, era
um homem que emanava um frémito a que a noviça não conseguia ficar indiferente.
Que podia ela fazer se o garboso nobre não desviava o olhar? Tentava rezar com fervor,
pedia à Virgem e aos santos que viessem em seu auxílio, mas como poderia ela afastar
o ardor, a agitação e a veemência que sentia?
No final do ofício, e por ser domingo,
a abadessa convidou o grupo de ilustres para a mesa conventual na porfia de que,
com o estômago cheio e satisfeito, viessem as doações, que bem precisava delas pois
entrariam umas poucas noviças pobres e sem dote no mês seguinte. A abadessa era
uma mulher prática e desejava recolher tantas raparigas quantas pudesse, uma vez
que, na pobreza das suas vidas, nos campos ou na cidade, muitas perder-se-iam sem
retorno. Ali, pelo menos, teriam o alimento espiritual que as faria fortes e
destemidas, teriam a instrução mínima, um tecto, comida na mesa e assistência
na velhice. Era dura a vida no convento, mas era melhor para qualquer mulher
morrer ali do que enrolada em mil trapos viscosos, coberta de piolhos e de pulgas,
devorada pelas dores e pelas chagas, deitada na valeta de um descaminho...
Para toda a sua obra e actividade,
a abadessa necessitava de rendimentos, doações, benesses e da preferência dos poderosos
deste mundo, os quais compensavam com largas somas as guerras que travavam e as
injustiças que praticavam, transformando-as em bens espirituais e atenuando assim
as penas dos seus pecados. E eis que o infante Manuel se via atravessando o claustro,
pelo único passilho permitido a leigos e entrando depois numa sala comprida, abobadada,
caiada de branco e onde uma grande mesa, posta com uma toalha imaculada,
parecia esperar desde sempre a chegada de convidados. Sentados que foram os nobres
no banco corrido, quatro de um lado e três do outro (que a abadessa se sentou à
cabeceira), da grande cozinha do mosteiro começaram a chegar alguns pratos de rigor:
caldo de carne, galinha de cabidela e feijão branco, sem grande sabor, viandas de
leite e chourições postos em grandes fatias de pão. Os doces, esses sim, eram divinais:
a marmelada branca e o toucinho-do-céu converteram o jantar num ganho de paladar
e de delícia terrena.
Acrescentava-se a este o sabor de
algo ainda não provado, algo que se desenhava no horizonte de Manuel: enquanto levava
a colher à boca, olhava para Isabel e saboreava cada pedacinho de toucinho-do-céu
com duplo gozo. O doce amendoado tomou mesmo foros de êxtase antecipado. Entretanto,
a lisonja da abadessa e de várias freiras mais velhas, que intentavam servi-lo a
ele, Manuel, desveladamente, fazia-o sorrir, e sempre que o fazia mirava Isabel,
acompanhando com o olhar todos os gestos do seu serviço. Sorria quando ela
passava com as escudelas e aviava a água ou o vinho à sua frente, podendo
sentir o seu cheiro fresco enquanto ela se debruçava sobre si e o atendia, trémula,
vertendo o precioso líquido de um enorme jarro de boa prata que saía à mesa nas
melhores ocasiões. Sorria Manuel». In Maria João Câmara, O Pecado e a Honra,
Oficina do Livro, Leya, 2012, ISBN 978-989-555-830-8.
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