Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…)
Então os homens saíram das sombras e o doutor teve um
momento alucinatório ao perceber o contraste dos uniformes pretos contra o
inocente pano de fundo rosa da macieira em flor. As botas lustradas marchavam
sobre um carpete de pétalas recém-caídas enquanto se aproximavam dele. O que o
senhor faz por aqui?, indagou o primeiro. Quem é o senhor?, perguntou o outro,
mantendo o mesmo tom raivoso. Num italiano desajeitado em virtude do medo, ele
começou: sou o doutor Litfin. Sou o..., e fez uma pausa em busca do termo mais
adequado. Sou o padrone
daqui. Os carabinieri tinham
sido informados de que o novo proprietário era um alemão, e o sotaque parecia
real o bastante, de modo que eles abaixaram as armas, mas mantiveram o dedo
perto do gatilho. Litfin tomou o gesto como uma permissão para abaixar as mãos,
o que fez bem devagar. Por ser alemão, sabia que as armas seriam sempre
superiores a qualquer apelo a direitos civis, daí ter esperado que se
aproximassem dele, o que não o impediu de voltar momentaneamente sua atenção
para os três homens que permaneciam no terreno recém-arado, agora tão imóveis
quanto ele, atentos aos carabinieri que se aproximavam e a ele próprio. Os dois
policiais, de repente inseguros frente à pessoa capaz de arcar com as reformas da casa e do
terreno, à vista de todos, aproximaram-se do dr. Litfin e à medida que o faziam
o equilíbrio do poder alterava-se. Consciente disso, Litfin aproveitou a
oportunidade.
O que significa tudo isso?, perguntou, apontando para o
terreno e deixando que os policiais concluíssem por si sós se ele estava referindo-se
ao relvado arruinado ou aos três homens que permaneciam do outro lado. Tem um
cadáver no seu terreno, respondeu o primeiro polícia. Sim, eu sei disso, mas o
que é toda essa..., ele buscou o termo apropriado, mas só conseguiu emitir um distruzione. As marcas do trilho dos
pneus pareciam aprofundar-se enquanto os três homens as avaliavam, até que
finalmente um dos polícias disse: fomos obrigados a atravessar o terreno. Embora
fosse uma mentira descarada, Litfin optou por ignorá-la. Voltou as costas aos
polícias e começou a caminhar em direcção aos outros três homens tão rápido que
ninguém tentou detê-lo. Chegando ao final da primeira vala, bastante profunda,
perguntou ao homem que parecia estar no comando: o que é isso? O senhor é o
doutor Litfin?, perguntou o outro médico, que já tinha sido informado sobre o
alemão, sobre quanto havia pago pela
casa e quanto havia gasto até então com as reformas. Litfin confirmou e, como o
outro demorava a responder, perguntou de novo: o que é isso?
Um homem de uns vinte anos, acho, respondeu o dr. Bortot,
voltando-se em seguida para seus assistentes a fim de fazê-los continuar com o
trabalho. Demorou um pouquinho para que Litfin se recuperasse da resposta
grosseira, mas, quando o fez, passou sobre a terra revolvida e se posicionou ao
lado do outro médico. Ficaram ali por um bom tempo sem dizer nenhuma palavra,
lado a lado, observando os dois assistentes revolvendo a terra com vagar. Passados
alguns minutos, um dos homens entregou outro osso ao dr. Bortot, que, com um
rápido olhar, identificou-o e posicionou-o ao final do outro pulso. O mesmo
posicionamento rápido se deu com os dois ossos seguintes. Ali, à sua esquerda,
Pizetti, disse Bortot, apontando para um minúsculo artelho exposto no extremo
oposto da vala. O homem a quem ele se dirigiu visualizou o objecto, agachou-se,
apanhou-o e entregou-o ao médico. Bortot o estudou por um instante, mantendo-o
delicadamente entre o polegar e o indicador, e depois se voltou para o alemão. Cuneiforme
lateral?, perguntou.
Litfin acompanhou o movimento dos
seus lábios enquanto ele olhava para o
osso. Sem dar tempo para que respondesse, Bortot passou o osso para ele. Litfin
pegou-o nas mãos por um momento, depois olhou para os ossos espalhados sobre o
plástico a seus pés. Ou intermediário, Litfin respondeu, mais à vontade com o
latim que com o italiano. Sim, sim, talvez, Bortot replicou. Fez um aceno em
direcção ao plástico e Litfin curvou-se para colocá-lo no fim do osso comprido
que se unia ao pé. Ergueu-se e os dois olharam para ver o resultado. Ja, ja murmurou
Litfin, e Bortot assentiu com a cabeça. Por mais uma hora os dois permaneceram
juntos ao lado do sulco feito pelo tractor, revezando-se para apanhar os ossos
dados pelos assistentes, que continuavam a passar o rico solo pela peneira. De
quando em quando divergiam sobre um fragmento ou uma lasca, mas em geral
concordavam na classificação do que lhes era passado pelos dois cavadores. O
sol primaveril caía sobre eles. Ao longe, um cuco passou a emitir o seu canto
de acasalamento, repetindo-o até que os quatro homens não lhe dessem mais bola.
À medida que o calor aumentava, eles começaram a tirar os seus casacos, que
acabaram todos pendurados nos galhos mais baixos das árvores alinhadas a um dos
lados do terreno que delimitavam a propriedade». In
Donna Leon, O Fardo da Nobreza, 1997, Companhia das Letras, 2012, ISBN
978-853-592-056-7.
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