Cortesia
de wikipedia e jdact
«Não havia nada de particularmente
notável no terreno de cem metros quadrados de mato seco no limite de um
vilarejo ao sopé das Dolomitas. Terminando num talude, era coalhado de
carvalhos prontos para virar lenha se assim quisessem, o que serviu de
argumento para pôr o preço lá em cima quando o terreno e a casa bicentenária
nele erigida foram colocados à venda. Ao norte, uma montanha de face escarpada projectava-se
sobre a pequena cidade de Ponte nelle Alpi; a cem quilômetros ao sul, Veneza,
longe o suficiente para ter qualquer influência sobre a política ou os costumes
locais. Os habitantes dos vilarejos relutavam em falar italiano, ficando mais à
vontade com o dialeto bellunese.
O terreno não era cultivado havia cerca de cinquenta anos, tempo em que a casa
de pedra permanecera vazia. As enormes telhas que compunham o telhado tinham
mudado com a passagem do tempo e as bruscas variações de temperatura, talvez
até mesmo devido a um ou outro tremor de terra que atingiu a região nos séculos
em que o telhado protegeu a casa da chuva e da neve, o que já não fazia mais,
pois muitas dessas telhas jaziam no chão, deixando os pavimentos superiores
expostos ao mau tempo. Em razão de a casa e a propriedade serem o centro de um
inventário litigioso, nenhum dos oito herdeiros se dera ao trabalho de
consertar os vazamentos, temerosos de jamais recuperarem as poucas centenas de
milhares de liras que custariam os reparos. Com isso, a chuva e a neve caíram,
depois jorraram para dentro, corroendo os plásticos e os pisos, e a cada ano
que se passava o telhado se inclinava cada vez mais ébrio em direcção ao solo.
O terreno fora abandonado pelos
mesmos motivos. Nenhum dos herdeiros queria gastar tempo ou dinheiro cultivando
a terra, nem queria colocar em risco o seu direito ao ser visto fazendo uso
irregular da propriedade. As ervas daninhas floresceram, fortalecidas pelo facto
de os últimos encarregados de cultivar a terra terem usado como adubo por
décadas os dejectos de seus coelhos. Foi a perspectiva de dinheiro estrangeiro
que resolveu o litígio: dois dias depois de um médico alemão aposentado ter
feito uma oferta pela casa e pelo terreno, os oito herdeiros reuniram-se na
residência do mais velho. Antes que a noite acabasse haviam concordado
unanimemente em vender tudo; em seguida, decidiram não vender até que o
estrangeiro tivesse dobrado a sua oferta inicial, o que constituiria o
quádruplo do que qualquer um dos
moradores da região estaria disposto a, ou teria condições de, pagar.
Três semanas antes de o acordo ser
finalizado, os andaimes foram erguidos e as telhas centenárias e artesanais que
restavam foram arremessadas para baixo, espatifando-se no quintal. A arte de
instalar as telhas tinha morrido com os artesãos que sabiam como cortá-las,
assim, elas foram substituídas por retângulos moldados de cimento pré-fabricado
que guardavam uma vaga semelhança com as telhas de terracota. Tendo o médico
contratado o herdeiro mais velho como seu capataz, a reforma foi rápida; e, por
se estar na província de Belluno, foi realizada a contento e honestamente. Em
meados da Primavera, a reforma da casa estava quase terminada, e, perto dos
primeiros dias de Verão, o novo proprietário, que passara a sua vida
profissional enfurnado em centros cirúrgicos muito iluminados e supervisionava
a reforma por telefone e fax a partir de Munique, passou a concentrar os seus
pensamentos na criação do jardim com que havia sonhado por anos.
A memória de um vilarejo é perene,
e lembrou-se que o antigo jardim ficava ao longo de uma fila de nogueiras nos
fundos da casa, o que fez Egidio Buschetti, o capataz, decidir arar ali. A
terra não tinha sido cultivada pela maior parte de sua existência, o que levou
Buschetti a calcular que devia passar o tractor por ali duas vezes, a primeira
para cortar as ervas daninhas de um
metro de altura, a segunda para sulcar para a superfície o rico solo em repouso.
A princípio, Buschetti achou que era um cavalo, lembrava que os antigos
proprietários tinham dois, de modo que manteve o tractor em movimento até
alcançar o ponto que estabelecera como limite do terreno. Forçando o enorme
volante, deu meia-volta com o tractor e voltou por onde tinha vindo, orgulhoso
da rectidão dos sulcos, contente de estar novamente ao sol, feliz com os sons e
o ritmo do trabalho e agora certo de que a Primavera tinha chegado. Então viu o
osso projetando-se retorcido do sulco que tinha acabado de arar, a sua extensão
branca visivelmente destacada sobre a terra quase negra. Não, não era comprido
o suficiente para ser de um cavalo, e ele não se lembrava de alguém ter criado
ovelhas por ali. Intrigado, reduziu a marcha do tractor, como que temendo
esmigalhar o osso ao passar por cima dele.
Pôs a máquina em ponto morto e
deixou que parasse. Accionou o travão de mão, desceu do alto assento de metal e
caminhou até ao osso erecto que apontava para o céu. Agachou-se para pegá-lo e
tirá-lo do trajecto do tractor, mas uma súbita relutância o fez erguer-se
novamente e dar uma pancadinha nele com a ponta de sua robusta bota, esperando
com isso deslocá-lo. Mas o osso não se movia, então Buschetti voltou até ao
tractor para buscar uma pá que mantinha atrás do assento. Quando virou, os seus
olhos foram atraídos por uma forma oval brilhante um pouco adiante no fundo do sulco. Não
havia crânio de cavalo ou ovelha que pudesse apresentar formato tão
arredondado, e nenhum deles o teria encarado com caninos tão afiados,
assustadoramente semelhantes aos do próprio Buschetti». In Donna Leon, O Fardo da Nobreza,
1997, Companhia das Letras, 2012, ISBN 978-853-592-056-7.
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