sábado, 17 de junho de 2017

Terra Sonâmbula. Mia Couto. «Chorando assim você vai chamar os espíritos. Ou se cala ou lhe rebento a tristeza à pancada»

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«(…) Muidinga vai avançando, pisando com mil cautelas. Aquele recinto está contaminado pela morte. Seriam precisas mil cerimónias para purificar o autocarro. Não faça essa cara, miúdo. Os falecidos ofendem- se lhes mostramos nojo. Muidinga arruma o saco num banco. Senta-se e observa o recanto conservado. Há tecto, assentos, encostos. O velho, impávido, já se deitou a repousar. De olhos fechados, espreguiça a voz: sabe bem uma sombrinha assim. Não descanso desde que fugimos do campo. Não quer apanhar sombra? Tuahir, vamos tirar esses corpos daqui. E porquê? Cheiram-lhe mal? O miúdo não responde logo. Está virado para a janela quebrada. O velho insiste que descanse. Desde que saíram do campo de deslocados eles não tinham tido pausa. Muidinga permanece de costas viradas. Escuta-se apenas o seu respirar, quase resvalando em soluço. Então, ele repete a sussurrante súplica: que se limpe aquele refúgio. Peço-lhe, tio Tuahir. É que estou farto de viver entre mortos. O velho apressa-se a emendar: não sou seu tio! E ameaça: o moço que não abuse das familiaridades. Mas aquele tratamento é só a maneira da tradição, argumenta Muidinga. 
Em você não gosto. Não lhe chamo nunca mais. E me diga: quer encontrar os seus pais porquê? Já expliquei tantas vezes. Não consigo entender. Vou-lhe contar uma coisa: os seus pais não lhe vão querer ver nem vivo. Porquê? Em tempos de guerra, filhos são um peso que atrapalha. Saem a enterrar os cadáveres. Não vão longe. Abrem uma única campa para poupar esforço. No caminho do regresso encontram mais um corpo. Jazia junto à berma, virado de costas. Não estava queimado. Tinha sido morto a tiro. A camisa estava empapada em sangue, nem se notava a cor original. Junto dele estava uma mala, fechada, intacta. Tuahir sacode o morto com o pé. Revista-lhe os bolsos, em vão: alguém já os tinha vazado. Eh pá, este gajo não cheira. Atacaram o machimbombo há pouco tempo. O miúdo estremece. A tragédia, afinal, é mais recente do que ele pensava. Os espíritos dos falecidos ainda por ali pairavam. Mas Tuahir parece alheio à vizinhança. Enterram o último cadáver. O rosto dele nunca chega a ser visto: arrastaram-no assim mesmo, os dentes charruaram a terra. Depois de fecharem o buraco, o velho puxa a mala para dentro do autocarro. Tuahir tenta abrir o achado, não é capaz. Convoca a ajuda de Muidinga: abre, vamos ver o que está dentro. Forçam o fecho, apressados. No interior da mala estão roupas, uma caixa com comidas. Por cima de tudo estão espalhados cadernos escolares, gatafunhados com letras incertas. O velho carrega a caixa com mantimentos. Muidinga inspecciona os papéis. Veja, Tuahir. São cartas. Quero saber é das comidas. O miúdo remexe no resto. As mãos curiosas viajam pelos cantos da mala. O velho chama a atenção: ele que deixasse tudo como estava, fechasse a tampa. Tira só essa papelada. Serve para acendermos a fogueira. O jovem retira os caderninhos. Guarda-os por baixo do seu banco. Não parece pretender sacrificar aqueles papéis para iniciar o fogo. Fica sentado, alheio. No enquanto, lá fora, tudo vai ficando noite. Reina um negro silvestre, cego. Muidinga olha o escuro e estremece. É um desses negros que nem os corvos comem. Parece todas as sombras desceram à terra. O medo passeia os seus chifres no peito do menino que se deita, enroscado como um congolote. O machimbombo rende-se à quietude, tudo é silêncio taciturno. Mais tarde, começa-se a escutar um pranto, num fio quase inaudível. É Muidinga que chora. O velho levanta-se e ralha: pára de chorar! É que me dói uma tristeza... Chorando assim você vai chamar os espíritos. Ou se cala ou lhe rebento a tristeza à pancada. Nós nunca mais vamos sair daqui. Vamos, com certeza. Qualquer coisa vai acontecer qualquer dia. E essa guerra vai acabar. A estrada já se vai encher de gente, camiões. Como no tempo de antigamente. Mais sereno, o velho passa um braço sobre os ombros trementes do rapaz e lhe pergunta: tens medo da noite? Muidinga acena afirmativamente. Então vai acender uma fogueira lá fora. O miúdo levanta-se e escolhe entre os papéis, receando rasgar uma folha escrita. Acaba por arrancar a capa de um dos cadernos. Para fazer fogo usa esse papel. Depois senta-se ao lado da fogueira, ajeita os cadernos e começa a ler. Balbucia letra a letra, percorrendo o lento desenho de cada uma. Sorri com a satisfação de uma conquista. Vai-se habituando, ganhando despacho. Que estás a fazer, rapaz? Estou a ler. É verdade, já me esquecia, você é capaz de ler. Então leia em voz alta que é para me adormecer». In Mia Couto, Terra Sonâmbula, Editorial Caminho, Lisboa, 1992, ISBN 972-21-0790-9.

Cortesia de Caminho/JDACT