sábado, 2 de setembro de 2017

A Princesa Guerreira. Barbara Erskine. «Muito mais tarde, ouviu a senhora Lal, do apartamento do rés-do-chão, abrir a porta e sair, o som dos chinelos a martelar nos degraus»

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«(…) Tinha-se comportado como um idiota. Em que sentido? Não fora Will, seguramente. Tinham discutido no passado, mesmo antes daquela última ruptura. Fizeram mais do que discutir, lutaram um com o outro. Mas ele não seria capaz de obrigá-la afazer algo contra a sua vontade. Ou seria? Teria sido capaz de segui-la e a Ash até casa dela? Se o fizera, poderia ter entrado à socapa. Jess sabia que ele ficara com uma chave, apesar de insistir que lha devolvera. Tinham dançado juntos, no fim da noite. Mais do que uma vez. Ela lembrava-se disso. Por momentos, sentira os braços dele à sua volta, com uma familiaridade tão terna, e abandonara-se àquele abraço. Fora Will quem, minutos depois, se afastara, movendo-se solitário ao som da música, deixando-a a dançar sozinha. Com um suspiro de exaustão, Jess fechou os olhos.
Muito mais tarde, ouviu a senhora Lal, do apartamento do rés-do-chão, abrir a porta e sair, o som dos chinelos a martelar nos degraus. Ia à loja de esquina; não precisava de levar os sapatos finos. No seu tormento, Jess sorriu afectuosamente. Às vezes, a velha senhora chamava--a para lhe perguntar se queria que ela lhe trouxesse o jornal de domingo, ou um pouco de leite. Mas não nesse dia. Nesse dia, havia silêncio; talvez a senhora Lal tivesse ouvido Will a bater à porta com estridor e pensado que Jess tinha saído. Levantando-se, dorida, foi até à janela e olhou para baixo. A senhora Lal descia a rua devagar, com um casaco de malha azul sobre o sari e o cabelo grisalho preso num rolo desmazelado. Seguindo-a, viu-a hesitar e abrandar de repente, atravessando a rua para o outro lado. Foi então que reparou neles. Dois rapazes negros a rondarem o portão que dava para a praça. Fitou-os por momentos, de súbito com a garganta seca. Um deles era Ash. O outro o seu irmão mais velho, Zac. Não tiravam os olhos da pobre senhora Lal, apreciando claramente o seu desconforto. Zac chamou-a e a mulher idosa acelerou o passo, afastando-se deles o mais depressa que podia, na direcção da loja. Talvez devesse ir lá abaixo enxotá-los. Que faziam ali, afinal? Os rapazes viviam em Constable Estate, na outra ponta do colégio. Então, quase como se soubesse que ela estava a olhar para ele, Jess viu Ash mover-se de repente. Saltou para a estrada, onde ela o veria melhor, e de onde ele talvez conseguisse vê-la, e esboçou de novo aquela vénia cortês, elaborada e teatral, dirigida à sua janela. Zac ria às gargalhadas. Jess viu-o apontar um pontapé pouco convicto à cabeça do irmão, antes de Ash soprar um beijo na direcção da casa dela e os dois rapazes se virarem para o outro lado, caminhando num passo estugado e casual até à estação de metro e à buliçosa High Street». In Barbara Erskine, A Princesa Guerreira, 2008, tradução de Catarina Almeida, Grupo Planeta, Planeta Manuscrito, Lisboa, 2009/2010, ISBN 978-989-657-113-9.

Cortesia de PManuscrito/JDACT