Irlanda.
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«Ele
vai morrer, não vai?, perguntou Iseult MacFergus enquanto baixava os olhos para
o corpo ferido do escravo. As costas do homem estavam cobertas por marcas de
chicotadas ainda em carne viva. Estava pálido e com as costelas ressaltadas,
como se não comesse adequadamente há muitas luas. Iseult estremeceu só de
pensar no tormento pelo qual ele devia ter passado. Não sei, disse Davin Ó
Falvey, passando uma bacia de água fria para Iseult. Acho que desperdicei um
bom punhado de prata. Usando uma esponja, Iseult começou a enxugar o sangue nas
costas do homem. Davin, não precisamos de um escravo para nossa casa. Não devia
tê-lo comprado. A aquisição de escravos vinha-se tornando uma prática menos
comum nas tribos. A própria família de Iseult jamais tivera condições de
possuir escravos, facto que a fez recordar dolorosamente de que pertencia a uma
casta inferior. Se não o tivesse comprado, outra pessoa teria. Davin chegou por
trás dela e pousou as mãos nos seus ombros. Ele estava sofrendo muito, Iseult.
Quase não sobreviveu aos espancamentos sofridos durante o leilão. Iseult cobriu
as mãos de Davin com as suas. O seu noivo jamais conseguira deixar um homem
sofrer se pudesse fazer algo para intervir. Esse era um dos motivos pelos quais
Davin era o seu amigo mais querido e o homem com quem concordara em casar.
Iseult sentiu um peso súbito no coração. Davin merecia uma
mulher melhor que ela. Ela fizera tudo ao seu alcance para salvar a sua
reputação, mas os mexericos não haviam diminuído mesmo passados três anos.
Iseult não sabia por que Davin a pedira em casamento, mas sua família ficara
muito feliz com a oportunidade oferecida pela aliança. Não era todo o dia que a
filha de um ferreiro se casava com o filho de um chefe. Deixe a curandeira
cuidar dele, disse Davin. Iseult reconheceu o tom na voz do noivo, juntamente
com o convite subjacente. Venha comigo, Iseult. Passamos uma semana inteira sem
nos ver. Senti saudades. Iseult sentiu um arrepio, mas forçou um sorriso. Vá
com ele, comandou a sua mente. Embora Davin nunca a houvesse culpado pelos seus
pecados, ela se sentia indigna de seu amor. Depois de chamar a curandeira,
Davin segurou a mão de Iseult e a conduziu para fora, onde a lua deitava uma
sombra sobre o seu rosto. Com cabelos claros e penetrantes olhos azuis, Davin
era o homem mais bonito que Iseult já vira. Ele conduziu a mão de Iseult até à sua
face barbada. Uma pontada de temor trespassou o seu coração, porque ela sentiu
que ele estava prestes a beijá-la. Iseult aceitou o seu abraço, desejando que
pudesse sentir o mesmo ardor que ele sentia por ela. Dê tempo ao tempo, disse a
si mesma. Contudo, mesmo enquanto se entregava ao beijo, Iseult teve a sensação
de que estava fora de seu corpo, uma observadora em vez de uma participante.
Ele abraçou-a forte, sussurrando no seu ouvido: sei que não quer tornar-se
minha amante antes do Beltane. Mas eu seria um estúpido se não tentasse
convencê-la. Ela o empurrou, baixando os olhos. Não posso.
O seu rosto reluzia com vergonha. O simples pensamento de se deitar
com um homem, qualquer homem, suscitava lembranças dolorosas. O rosto de Davin
transpareceu tensão, mas ele não a pressionou mais. Jamais a obrigaria a fazer
nada que não quisesse, ele garantiu-lhe. E isso simplesmente fazia com que ela
se sentisse ainda mais culpada. Não queria deitar com ele, mas, se não o
fizesse, que espécie de mulher seria? Anos atrás ela rendera-se a um momento de
paixão e pagara o preço. Mas agora que um homem a amava e queria casar com ela,
Iseult não conseguia esquecer as lembranças ruins. Pousando uma das mãos no seu
ombro, Davin beijou-lhe a testa. Esperarei até que esteja pronta. De mãos dadas
com Iseult, Davin a conduziu de volta até à sua casa dentro do forte circular.
Quando, chegado à cabana, Iseult parou ao lado da moldura de madeira da porta,
como se fosse um escudo. O que vai fazer com o escravo? Não sei. Talvez ele
possa ajudar com a colheita ou cuidar dos cavalos. Falarei com o escravo quando
ele acordar. Bem, eu a verei amanhã de manhã, disse Davin, arrependimento
pesando no seu tom de voz. Ele a beijou novamente. Faça o que puder para manter
nosso escravo vivo. Iseult fez que sim com a cabeça, curvando-se para entrar na
casa. Por um momento ficou parada na entrada, organizando os seus pensamentos.
Por que não conseguia sentir a chama da paixão da qual as mulheres falavam
tanto? Os beijos e o afecto de Davin não evocavam nada nela além de vazio. O
que havia de errado com ela? Davin, de todos os homens, merecia ser amado. Davin
a tratava como um tesouro precioso, oferecendo-lhe tudo que ela queria. Ela não
se sentia merecedora dele. Com o coração pesado, foi-se reunir aos outros Muirne
estava com a sua família, preparando comida para o jantar. Embora não fossem
seus parentes, os O’Falveys haviam aberto as portas para ela, concedendo-lhe
total hospitalidade. Graças a eles, Iseult tinha um lugar onde ficar enquanto
se acostumava à nova tribo». In Michelle Willingham, Guerreiro Escravo, 2008,
Harlequin Histórico, 70, 2009, ISBN 978-857-687920-6.
Cortesia de Harlequin/JDACT