O fim como princípio de tudo
Morre
o corpo fica a fama
«(…)
Não serve para nada!, lamentou-se Falcão, um antigo barbeiro dedicado à taberna
da companheira, compondo a seguinte tese. Sua senhoria nem sequer faz jus ao
que dizem dele. Bom amador? Bah... Se fosse, a rameira não lhe enfeitava a cabeça.
É que no reino temia-se o pior. Os estratos da sociedade de então, fossem eles
eclesiásticos, nobres, burgueses ou o povo, estavam preocupados com a provável
perda da independência, um desastre, mais um, depois do monarca Fernando perder
todas as batalhas em que se metera.
Ao pregão, ouvido durante todo o
dia pelas ruas de Lisboa, nem todos estariam dispostos a submeter-se. O Falcão
era um desses. Homem de grande iniciativa, fizera prosperar a taberna de Mariamem,
por quem se apaixonara, emergindo agora através dessa ligação como legítimo
proprietário do estabelecimento que fora de Justo Lourenço. Muito politizado,
participara na batalha do Salado ao lado de el-rei Afonso IV nas campanhas da
Galiza atrás das quimeras de Fernando I, num tempo em que, sendo a sua antiga profissão
equiparada à dos cirurgiões, cortava cabelos e arrancava dentes, distribuía
punções e punha emplastros, lidando com todos, desde o mais ilustre fidalgo ao
moço de estrebaria. Este convívio diário deu-lhe o reforço de que precisava
para entender os enredos políticos, quase todos críticos na relação do reino com
o rei. Era também homem de não ter medo, de se atirar ao desconhecido sem se encolher,
ver onde os outros não chegavam. Um homem destes, com campanhas de guerra contra
os castelhanos e ingleses, alguma vez se deixava iludir por avisos mal
justificados?
Avisos?, interrogou-se o antigo barbeiro,
nem que sejam reais, quero lá saber. Em vez de respeitar o pregão, cedeu à
curiosidade, ficou de orelha alerta, ele que já muitas coisas vira e mais ouvira.
Ficar encerrado na taberna enquanto as novidades corriam lá fora? Nem pensar. Ao
ouvir a proclamação tantas vezes repetida, o Falcão deduziu logo que tal intimação
era daquelas que escondiam coisas muito para além do que parecia. Pensou nisto,
e não foi preciso o último aviso para confessar à companheira que uma pulga lhe
entrara no ouvido. Olha, Mariamem, não descanso enquanto não expulsar este incómodo.
Falas assim, mas quem te percebe sou eu, concluiu a estalajadeira, amante e sócia,
municiadora das Almaras e Orianas, moças que jogavam o corpo para sensuais devaneios
de escudeiros e outros senhores do castelo.
Logo que a noite assomou e a hora
marcada pelo pregão para fechar janelas e portas chegou, a custo, o taberneiro começou
a expulsar a clientela, usando como de costume a sua experiente capacidade para
convencer cabeças cheias de vapores. Não há direito, ó Falcão!, reclamava um almocreve
do serviço das cavalariças do castelo. Então a gente gasta aqui a nossa riqueza
e tu pões-nos na rua? Vamos, hoje tenho mais que fazer, não vos posso aturar o resto
da noite, não é? Ó Falcão, o almocreve tem razão, papagueou outro pingado, e
não é só por isso. Se apareço em casa a esta hora, a mulher desconfia... Sim, está
bem! Não tens nem mulher nem casa e queres fazer da minha a tua. Vá, todos lá
para fora! Não ouviram o pregoeiro? Se os guardas do rei vos apanham, pelo menos
das chibatadas não se livram. Vá, todos lá para fora!
Com insistentes argumentos e alguns
empurrões, suaves, pois alguns mal se tinham de pé, o taberneiro lá conseguiu
evacuar a taberna. Sempre com o pensamento numa boa história e na respectiva recompensa,
assim que fechou o comércio e deu algum tempo para que os habituais fregueses
seguissem os seus destinos, o Falcão vestiu um capote sombrio que o cobriu de alto
a baixo, dispondo-se a sair pelo quintal da casa de primeiro andar onde
habitava com Mariamem, naquele recanto de Lisboa a dois passos do Largo de Santo
António. Para ele, que não tinha filhos, a mulher era a sua fortaleza, a musa, sócia
e parceira de noites cada vez mais dormidas do que sentidas. Escondido na sua veste,
o antigo barbeiro saiu para a rua pelas traseiras, um quintal onde tinha animais
de criação e um anexo onde agora dormia a Almara, por deferência de Mariamem. Era
um covão sem vista para lado nenhum, encimado por um muro arrombado do lado de cima,
um alcouce imperceptível por onde entravam os senhores mais importantes, quando
o entusiasmo lhes chegava ou quando os dias tristes se iluminavam nas carícias que
recebiam das meninas da casa. Se a entrada da frente se fazia por um beco impreciso,
sem saída, a de trás, quem a não conhecesse, nem dava por ela». In
Jorge Sousa Correia, A Tentação de D. Fernando, Clube do Autor, 2017, ISBN
978-989-724-344-8.
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