As
Crianças de Cárquere. 1146
Coimbra,
Março de 1146
«(…) Notei mais risos à nossa volta,
mas também o desagrado de Afonso Henriques. Há anos que Bernardo Claraval nos garantia
ajuda na conquista de Lisboa, só que não havia sinais das tropas do Norte da
Europa. Os vinte soldadinhos que saltitavam num cais do Mondego para proteger a
princesinha não eram cruzados! Nem obviamente as criadas francesas, que desembarcavam
com trouxas à cabeça. Trouxeram a Sabóia toda..., resmungou Gonçalo. Estes jocosos
comentários escondiam o nervosismo miúdo que se começara a apoderar de nós, pois
não havia maneira de a princesa se dignar a aparecer. Chateado, Pêro Pais bufou-me
ao ouvido: onde anda a francesa? Lembrei-me então da sensação de desagradado apresentada
por Mafalda da Sabóia, quando a vira em Dijon.
Ela abominava o destino que o pai
lhe escolhera, olhara-nos com desprezo e altivez. A demora em abandonar o barco
era uma manifestação de desdém, uma forma nada subtil de nos humilhar. Santa
paciência!, bufou Gonçalo. O rei acusou o toque. De repente e sem aviso, Afonso
Henriques obrigou o Sultão a avançar pelo cais. O enorme e belo cavalo preto
contornou as criadas e os soldados e só parou em frente da prancha que levava ao
barco. Farto de aguardar pela sua rainha, o meu melhor amigo decidira ir buscá-la,
mas uma criadita mais ágil adiantou-se e correu a chamá-la.
Agora virá, garantiu o arcebispo
João Peculiar. Quando a francesa finalmente se mostrou, confirmei a opinião que
formara em Dijon. Mafalda da Sabóia não era bonita, nem simpática, e a frieza
trombuda com que executou a vénia ao futuro marido confirmou a sua relutância,
bem como a falta de encanto. A meu lado, Chamoa murmurou, num misto de pena e gozo:
coitada, é mesmo feia. A concorrência entre as mulheres fá-las muitas vezes
exagerarem na depreciação das rivais, mas desta vez não se tratava apenas disso.
Uma desilusão geral assentou arraiais na nossa comitiva, como se todos
lamentassem que a primeira rainha de Portugal (?) fosse um exemplar tão desprovido
de beleza, que assim tornava mais feio o nosso reino. O único imune ao abatimento
estético foi Gonçalo Sousa, que apreciou, agradado: tem umas boas mamas! De facto,
o peito de Mafalda era cheio e notava-se muito em alguém tão baixo, mas a minha
mulher logo se enxofrou. Como se não houvesse disso por cá! Talvez Maria Gomes,
habitualmente tão contida, quisesse apenas animar a mana Chamoa, que se ia
abatendo ao ver o sorriso permanente que Afonso Henriques dedicava à futura esposa,
imaginando-se já expulsa da alcova real pela estrangeira peituda. Não foi, contudo,
isso que aconteceu. Como o casamento real só se realizaria dali a duas semanas,
no Domingo de Páscoa, Mafalda da Sabóia instalou-se numa habitação na almedina
de Coimbra, rodeada de criadas e soldados, qual refém cuja segurança era essencial
garantir. Os seus contactos com Afonso Henriques foram esporádicos. Viam-se na Sé,
durante a missa, mas pouco falavam e nunca se encontraram para intimidades, aguardando
pela noite de núpcias.
Fechada a sete chaves, comentou Maria
Gomes. Chamoa continuou, pois, a receber o rei de Portugal na casa onde vivia, duas
ruelas ao lado da de Mafalda, mas a profunda melancolia não a abandonou, até porque
o meu melhor amigo, nada dado às subtilezas sentimentais, certa noite, ao deixá-la,
lhe disse: sereis sempre a minha amante, a minha barregã! Era obviamente isso que
a amargurava. O sonho que acalentava desde criança, ser rainha de Portugal, ia transformar-se
num pesadelo permanente. Sinto-me tão humilhada, confessou a dona Justa. A velha
ama produziu um único comentário: sois boa pessoa, mas tendes azar. Duas
lágrimas desceram pelo rosto de Chamoa. Nunca ninguém a definira tão bem. Sim, era
isso, tinha azar. Um azar dos diabos! A sua vida fora um somatório de azares e o
sonho de casar com o rei de Portugal morreria sem glória na nave central da Sé de
Coimbra». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das
Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.
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