sexta-feira, 8 de setembro de 2017

Assim Nasceu Portugal. Domingos Amaral. «Afonso Henriques ama-vos, minha mãe! Desde que vos haveis juntado nunca vos traiu!, proclamou ele»

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O Assassin de Lisboa 1142-1143
Lisboa, Abril de 1142
«(…) Na mão direita, o mostrengo levava uma arma e ao vê-la o coração de Mem falhou uma batida. Era a Lança de Cristo! A relíquia de Sellium, que Afonso Henriques tanto procurara e que havia sido entregue ao rei de Portugal em Hisn Abi Cherif! Como acabara nas mãos daquele louco purulento e perigoso? Ainda siderado, Mem recordou que, depois da batalha de Ourique, enquanto atravessava as campinas do além-Tejo com Zaida, a caminho de Mértola, os dois haviam visto uma estranha figura a passar ao longe, carregando uma lança. Seria o mesmo desvairado a quem todos chamavam Orimar? Embora sem forma de o confirmar, Mem percebeu o poder extraordinário do sanguinário líder dos Mantos Vermelhos e o simbolismo das mortes que praticava. Orimar, a Pústula, matava cristãos e moçárabes com a mesma lança com que Cristo fora ferido mortalmente na cruz! Assustado, o almocreve regressou a casa e disse, Ália, a Élia e a Ília que não podiam ficar ali nem mais um dia, pois os impiedosos canalhas acabariam por matá-las. E foi por isso que os quatro fugiram à pressa, chegando a Coimbra uma semana mais tarde, onde o almocreve nos revelou o que vira em Lisboa.
Meus queridos filhos e netos, a princesa Zaida, há muitos anos, costumava dizer que tudo estava ligado. Foi isso que eu senti, quando revi o almocreve Mem. A Lança de Cristo, que eu perdera em Ourique, ligava-nos a Lisboa, a cidade que meu pai tanto desejava conquistar. O nosso passado apontava para o nosso futuro.

O Assassin de Lisboa 1142-1143
Coimbra, Abril de 1142
No dia em que Mem chegou a Coimbra, Chamoa encontrava-se sentada numa manta, num campo próximo do Mondego, perto do local onde as barcaças atracavam. De cabelo solto, dalmática aberta e decote ao vento. Gostava de vir ali, ver o rio correr, mas naquela soalheira tarde o calor que lhe aquecia o corpo contrastava com a brisa que lhe arrefecia o coração. Pêro Pais, seu filho mais velho, que estava junto a ela e ao seu amigo Gualdim Pais, descrevera-lhe a reunião matinal onde Egas Moniz e João Peculiar haviam lido uma curta missiva papal, na qual Inocêncio II voltava a incentivar o casamento de Afonso Henriques com Mafalda da Sabóia. Como sempre, o príncipe recusara, mas o mero regresso daquela ideia, pela pena do papa, era um ensombramento. Não me querem rainha...
Durante mais de um ano, Chamoa escondera a intriga de Compostela que Afonso VII lhe soprara em Valdevez. Porém, perante tanta pressão a favor daquele absurdo matrimónio, sentia a sua lealdade cega a Afonso Henriques a deteriorar-se. Eles, queriam afastá-la, dissera-me ela na véspera, e nem um primogénito real nascido nas suas entranhas os continha. Angustiada, Chamoa já se imaginava banida e num impiedoso exílio, e gemeu. Que tendes, minha mãe?, perguntou Pêro Pais. Chamoa examinou-o, orgulhosa. Como tinha crescido, como estava bonito, com uns caracóis revoltos e negros, idênticos aos de seu pai, Paio Soares! Aos quinze anos, era impossível uma mãe não se sentir feliz com um filho assim, que gerava tanto a admiração dos homens, pela valentia e habilidade guerreira tão prematura, como a das mulheres, pelo charme e atrevimento tão inesperados. Mas, no seu primogénito, o que Chamoa estimava acima de tudo era a dedicação permanente a ela e a Afonso Henriques, como se o único propósito de Pêro Pais fosse mantê-los juntos e unidos para sempre.
Vão-no casar com a outra. Que será de mim? Pêro Pais repetiu o que sempre dizia o príncipe de Portugal não seguia os conselhos de Egas e de Peculiar. Tendes a fé própria dos mais novos, comentou Chamoa. Mas o mundo é mais sombrio do que pensais. Pêro Pais baixou os olhos, incomodado com o reparo. Como se fosse possível que um rapaz cujo pai morrera às mãos de Afonso Henriques, por causa do amor que ambos tinham a Chamoa, fosse um tolo ignorante! Afonso Henriques ama-vos, minha mãe! Desde que vos haveis juntado nunca vos traiu!, proclamou ele». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.

Cortesia da CasadasLetras/JDACT