Os Protagonistas
O Criminoso
«(…) Em 1877, o periódico Gajo dedicaria a sua
atenção aos trambulhões do operário, incapaz de providenciar o
necessário à manutenção do seu agregado familiar, nas condições normais em que
se encontrava. Calculada em 13$000 a remuneração mensal média de um operário,
as despesas correntes de uma família de três pessoas orçavam 13$800, sem contar
com extras mais ou menos imprevistos. Perante este deficit, quais as opções? Quais as possibilidades perante
esta situação, para quem pretendesse manter um nível de vida nos limiares da
dignidade? Quais e como podem ser as suas rotinas? ... o pobre homem faz a barba
de oito em oito dias, paga décimo, tem montepio, por causa de que padece de
moléstia do horror instintivo ao
hospital, onde estaria muito melhor do que na sua pocilga; tem o mau gosto de
querer andar calçado, e o ainda pior de gostar de vestir camisa lavada de vez
em quando, assim como o ainda mais repugnante de prezar a honestidade do filho
ou da mulher. Falta-lhe trabalho, pede-o, roga-o, implora-o.
Não há que fazer!, dizem-lhe.
Pede fiado, ora essa!, dizem-lhe. Vae esmollar; prohibe-lhe a policia!
Vê a mulher que estima, vê-se a elle próprio com as dores da fome. Rouba uma
insignificância. É pois ladrão depois de ter sido homem de bem durante a sua
vida inteira. O ciclo de inexorável descida ao mundo da marginalidade é, em
muitos casos, praticamente inevitável. Se a sua mulher ou o seu filho vão
trabalhar a remuneração é cerca de metade da sua mas, por outro lado, eles irão
ocupar o lugar de outro operário adulto, que assim se vê privado, em muitas
indústrias, do seu posto de trabalho. O sistema de trabalho fabril da sociedade
industrial encerra engrenagens e mecanismos que não se compadecem com os
dilemas individuais e, em virtude dessa insensibilidade, expele muitos do que
usa temporariamente para uma encruzilhada entre a total indigência ou a via do
crime, duas faces de um mesmo mundo marginal, que os poderes apresentam como
uma espécie de anti-sociedade. Os bairros populares, de vias estreitas,
pequenas casas de escassas condições, pouca limpeza, escuras como breu logo que
a noite cai, tornam-se palco, na maioria dos espíritos, dos acontecimentos mais
tenebrosos e couto das mais misteriosas personagens.
Contudo,
quem povoa o universo do crime dificilmente se pode reduzir a uma redutora e
conveniente estereotipia. Os seus tipos são vários e, por vezes, inesperados.
Aliás, uma primeira e curiosa permanência na análise dos problemas de ordem
pública pode ser exactamente a presença dos chamados agentes da ordem em
situações que dificilmente deveriam ser compatíveis com esse estatuto, antes
surgindo com regularidade como prevaricadores e como agentes de perturbação
dessa ordem que deveriam ajudar a preservar. Embora a amostra recolhida seja
muito rarefeita e com uma malha muito pouco apertada, não necessariamente
generalizável de forma linear, é possível encontrar uma activa participação de
soldados, polícias, milicianos ou guardas de diversa origem nos mais vários
desacatos registados desde os inícios do século XIX até idêntico período deste
século. Nos registos de ocorrências da Guarda Real da Polícia dos inícios de oitocentes
é possível encontrar por repetidas vezes, a necessidade de prender ou actuar
contra soldados, marinheiros e elementos de várias milícias da época, por se
envolverem em conflitos vários com a população ou entre si. No mesmo período, é
também motivo recorrente a ofensa de agentes da guarda como forma de protesto
quer de prostitutas, como de desordeiros, indivíduos cujas mercadorias são
apreendidas, frequentadores de tabernas encerradas ou mesmo populares que, sem
motivo aparente, decidem lançar impropérios à passagem das rondas. A categoria
de ameaças e insultos do registo de ocorrências da Guarda Real da Polícia está
repleta de casos destes, que ainda surgem em muitas outras situações. Em
Janeiro de 1809, são presos diversos indivíduos por ofensas à autoridade no
exercício da sua função: um arrais que passara a noite com uma mulher, ofende
um alferes da Guarda e ameaça-o com um cajado no dia 2, um caixeiro insulta uma
patrulha que andava em averiguações no dia seguinte e a 4 é a vez de um marujo
que ameaça de morte com uma pistola um polícia. Alguns dias depois é a vez de
abundante presença feminina; uma mulata insulta a patrulha que acudira a uma
desordem provocada pelo seu marido (dia 12), uma mulher de mau porte insulta um
oficial de justiça do Bairro do Mocambo (dia 16) e uma peixeira provoca um
motim, no sítio do Chafariz de Dentro, contra a Guarda que a tenta impedir de
vender peixe (dia 20); os protestos de comerciantes continuam a 21 com um outro
peixeiro a insultar o Comandante da Guarda do Chafariz de Dentro e um moço de
fretes a insultar o feitor da Mesa das Carnes. O desrespeito pelas autoridades
é quase tão frequente como o comportamento incorrecto dessas mesmas
autoridades. Entre as desordens e agressões registadas nesse mesmo mês de
Janeiro, a participação de soldados, guardas, polícias e/ou milicianos é
abundante, quer em motins com a população quer em conflitos entre si, e apenas
se pode destacar uma pequena porção do total: no dia 3, o comandante da Guarda
da Ribeira apresenta queixa de um oficial da Marinha que por duas vezes tentara
atacar a Guarda, uma semana depois uma patrulha da Guarda das Necessidades é
insultada e perseguida por um outro grupo de soldados da Guarda. No dia 15 um
marujo é preso por ter partido a cabeça a um barbeiro da Rua dos Remoladores, a
23 é um soldado de Cavalaria da Guarda Real da Polícia que inicia uma desordem
com dois rapazes que se estende ao ponto dos moradores do Distrito se verem
obrigados a fechar as portas, a 24 é um soldado do Regimento de Infantaria 4
que esfaqueia um sapateiro, enquanto a 27 é a vez de um seu colega de
Infantaria 10 ser preso por desordem. E a lista poderia continuar». In
Educar, O Mundo da Transgressão Social, Criminosos, boémios, prostitutas e
outros marginais,
Wordpress, Boémia, Wikipédia, 2007.
Cortesia
de Wikipédia/Educar/JDACT