sábado, 23 de setembro de 2017

Tudo Começou com Maquiavel. Luciano Gruppi. «… este é o fundamento liberal, sem dúvida progressista, do pensamento de John Locke. O Estado não recebe a sua soberania de nenhuma outra autoridade»

Cortesia de wikipedia e jdact

John Locke, (1632-1704)
«(…) Locke observa que o homem no estado natural está plenamente livre, mas sente a necessidade de colocar limites à sua própria liberdade. Por quê? A fim de garantir a sua propriedade. Até que os homens sejam completamente livres, existe entre eles uma luta que não garante a propriedade e, por conseguinte; tampouco uma liberdade durável. Locke afirma que os homens se juntam em sociedades políticas e submetem-se a um governo com a finalidade principal de conservarem as suas propriedades. O estado natural (isto é, a falta de um Estado) não garante a propriedade. É necessário constituir um Estado que garanta o exercício da propriedade, a segurança da propriedade. Visando isso, estabelece-se entre os homens um contrato que origina tanto a sociedade, como também o Estado (para Locke, as duas coisas vão juntas). Fica evidente a base burguesa dessa concepção. Já estamos numa sociedade em que nasceu o mercado, onde a relação entre os homens se dá entre os indivíduos que estabelecem entre si contratos de compra e de venda, de transferência de propriedades, etc. Esta realidade individualista da sociedade burguesa, alicerçada nas relações mercantis e de contrato, expressa-se na ideologia política, na concepção do Estado.
O Estado também aí surge de um contrato. Para Hobbes, porém, esse contrato gera um Estado absoluto, enquanto para Locke o Estado pode ser feito e desfeito como qualquer contrato. Isto é, se o Estado ou o governo não respeitar o contrato, este vai ser desfeito. Portanto, o governo deve garantir determinadas liberdades: a propriedade, e também aquela margem de liberdade política e de segurança pessoal sem o que fica impossível o exercício da propriedade e a própria defesa da liberdade. Já estão implícitos, aqui, os fundamentos de algumas liberdades políticas que devem ser garantidas: a de assembleia, a da palavra, etc. Mas, em primeiro lugar, a liberdade de iniciativa económica. É o típico individualismo burguês, no sentido de que o indivíduo humano pré-existiria ao Estado, de que os homens partiriam de uma condição natural em que são indivíduos soltos (para Marx, pelo contrário, o homem é um ser social e só se torna homem na medida em que vive e trabalha em sociedade; de outra forma seria um animal, um bruto).
Segundo esses pensadores, o indivíduo existiu antes da sociedade humana e esta nasceria pelo contrato entre indivíduos pré-existentes. Ora, do ponto de vista histórico, isso é pura fantasia, pois o homem só se torna homem vivendo em sociedade com outros homens, só organizando socialmente a sua própria vida. Imaginar que um indivíduo possa ser homem antes de organizar-se em sociedade não passa de uma típica projecção ideológica do individualismo burguês. É no modo de produção burguês que cada um individualmente se põe em relação com outro indivíduo, sem ter consciência do carácter social dessas relações económicas. O Estado é soberano, mas a sua autoridade vem somente do contrato que o faz nascer: este é o fundamento liberal, sem dúvida progressista, do pensamento de John Locke. O Estado não recebe a sua soberania de nenhuma outra autoridade.
Ao contrário do que se poderia pensar, o liberal Locke não polemiza contra o absolutismo de Hobbes, mas sim contra outro autor inglês: Robert Filmei (1588-1653), segundo o qual o poder estatal se originaria do poder divino. Locke entra em polémica contra Filmei justamente para defender a plena autonomia, a absoluta soberania do Estado moderno, assim como pensava também Hobbes. A relação entre propriedade e liberdade é extremamente evidente: o poder supremo não pode tirar do homem uma parte de suas propriedades sem o seu consentimento. Pois a finalidade de um governo e de todos os que entram em sociedade é a conservação da propriedade. Isso pressupõe e exige que o povo tenha uma propriedade, sem o que deveríamos concluir que, ao entrar na sociedade, perde-se justamente aquilo que constituí o objectivo desse contrato.
O Estado não pode tirar de ninguém o poder supremo sobre sua propriedade. Não é possível nenhum acto arbitrário do Estado que viole a propriedade: por exemplo, os impostos devem ser aprovados pelo Parlamento, o monarca não pode decretar impostos sem o consentimento do Parlamento, conforme tradição que já estava consolidada na Inglaterra, e assim por diante. É realmente estrita essa conexão entre propriedade e liberdade: a liberdade está em função da propriedade e esta é o alicerce da liberdade burguesa, que nessa época era progressista. Repito, é a visão burguesa que está na base dessa concepção. No entanto, é interessante observar que para Locke já existe uma distinção entre sociedade política (o Estado) e a sociedade civil (isto é, aquilo que no século XVIII passará a chamar-se de sociedade civil); por conseguinte, entre público e privado. Em que sentido nasce esta distinção?» In Luciano Gruppi, Tudo Começou com Maquiavel, L&PM Editores, 1980, ISBN 978-852-540-500-5.

Cortesia de L&PME/JDACT