quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Assim Nasceu Portugal. Domingos Amaral. «A mera possibilidade de a troca de crianças ser verdadeira e de eu ser um dos envolvidos provocava-me um abismal terror. Não sei o que fazer, disse-lhe»

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As Crianças de Cárquere. 1146
Coimbra, Março de 1146
«Nos meses iniciais de um novo ano, a intenção de Chamoa de confrontar meu pai esbarrou numa circunstância nova e desagradável, a doença de Egas Moniz. Durante as festividades do Natal anterior, em Lamego, terra onde meu pai fora governador, a proximidade excessiva de uma lareira levou-o à cama. Ao ver o marido, de sessenta e seis anos, num estado febril, Teresa Celanova instituiu um regime apertado de recuperação, proibindo visitas e seguindo à risca as recomendações dos curandeiros. No entanto, meu pai não melhorou e o seu espírito foi enfraquecendo. Entre Janeiro e Março, visitei-o três vezes, mas sempre que me sentava ao lado da sua cama, o meu coração apertava-se e decidi não o maçar. Quando regressei, em Março, a Coimbra, a intriga de Compostela, continuava, portanto, por esclarecer, o que muito desanimou a minha cunhada. Embora continuasse a dar-se ao rei de Portugal, e estivesse agora bem mais feliz, pois vivia na companhia dos seus seis filhos, Chamoa sentia-se redundante. Aposto que a francesa me vai afastar. Era uma possibilidade real. Sendo mãe de dois filhos de Afonso Henriques e a primeira barregã real, era óbvio que em poucas semanas a rainha Mafalda da Sabóia, prestes a chegar, tudo faria para a enxotar da cama do rei de Portugal.
A minha cunhada pressentia que apenas um golpe de asa inesperado a poderia reabilitar. Já não me chega a cama, confessou-me. O seu magnífico corpo, a sua lendária beldade e os dotes entre os lençóis ainda encantavam Afonso Henriques, mas não eram novidades. O meu melhor amigo filhava Chamoa quando queria e logo pensava no assunto seguinte. Em tudo menos em mim, protestava ela. Só um transtorno, um sobressalto, um abalo poderoso na identidade real, poderia devolver Chamoa à primazia do passado. Porém, sem o testemunho de Egas Moniz, esta temia confrontar o rei de Portugal com uma sórdida história, vaga e por esclarecer. Por isso, continuava calada. Será um erro? Deveria falar antes que a outra chegue?, perguntava-me constantemente. Mas também eu vivia atormentado com a intriga de Compostela, que me provocava o terrível susto da confusão de identidades. A mera possibilidade de a troca de crianças ser verdadeira e de eu ser um dos envolvidos provocava-me um abismal terror. Não sei o que fazer, disse-lhe.
Por isso, calei-me também, tal como Chamoa, e foi nesse silêncio cúmplice que rumámos, no final de Março, a Montemor, onde desembarcou finalmente aquela que viria a ser a primeira rainha de Portugal (?, não será dona Teresa?, jdact) Mafalda da Sabóia. A francesa chegou!, gritou-se nessa manhã. O barco partira da Vascónia e o rei de Portugal decidiu que uma comitiva real o devia receber. Estávamos todos lá, só faltando o meu pai. Peres Cativo engalanara-se com um bonito balandrau azul-escuro e Gonçalo Sousa, o alferes comandante das nossas tropas, compusera o rabo-de-cavalo e vestia uma dalmática verde-escura, cujas mangas eram demasiado largas, como sempre.
Já João Peculiar, arcebispo de Braga, usava um manto roxo, tal como Bernardo, o hispo de Coimbra, sendo ambos ladeados pelos párocos que formavam o cabido da Sé da cidade, como se aquela fosse uma solene festa do calendário religioso. Até o prior Teotónio, para surpresa geral, tinha decidido apresentar-se, acompanhado pelos monges de Santa Cruz, atrás dos quais se viam os poucos templários que havia de novo em Soure, onde a Ordem do Templo se recompunha do massacre de há dois anos. Além destes, perto de mim e de minha mulher, Maria Gomes, estavam também Mem, Chamoa, o filho desta, Pêro Pais, e o seu amigo Gualdim Pais, e foi com curiosidade que observámos a atracagem do barco, uma manobra tão demorada que o espirituoso Gonçalo Sousa se interrogou: estarão arrependidos? Todos nos rimos, especialmente Chamoa, mas a embarcação lá acabou por se imobilizar e saltaram para o cais de madeira alguns soldados, armados com espadas e escudos. Serão os cruzados prometidos?, ironizou Gonçalo». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.

Cortesia da CasadasLetras/JDACT