As
Crianças de Cárquere. 1146
Coimbra,
Março de 1146
«Nos meses iniciais de um novo ano,
a intenção de Chamoa de confrontar meu pai esbarrou numa circunstância nova e desagradável,
a doença de Egas Moniz. Durante as festividades do Natal anterior, em Lamego, terra
onde meu pai fora governador, a proximidade excessiva de uma lareira levou-o à cama.
Ao ver o marido, de sessenta e seis anos, num estado febril, Teresa Celanova instituiu
um regime apertado de recuperação, proibindo visitas e seguindo à risca as recomendações
dos curandeiros. No entanto, meu pai não melhorou e o seu espírito foi enfraquecendo.
Entre Janeiro e Março, visitei-o três vezes, mas sempre que me sentava ao lado da
sua cama, o meu coração apertava-se e decidi não o maçar. Quando regressei, em Março,
a Coimbra, a intriga de Compostela, continuava, portanto, por esclarecer,
o que muito desanimou a minha cunhada. Embora continuasse a dar-se ao rei de Portugal,
e estivesse agora bem mais feliz, pois vivia na companhia dos seus seis filhos,
Chamoa sentia-se redundante. Aposto que a francesa me vai afastar. Era uma possibilidade
real. Sendo mãe de dois filhos de Afonso Henriques e a primeira barregã real, era
óbvio que em poucas semanas a rainha Mafalda da Sabóia, prestes a chegar, tudo faria
para a enxotar da cama do rei de Portugal.
A minha cunhada pressentia que apenas
um golpe de asa inesperado a poderia reabilitar. Já não me chega a cama, confessou-me.
O seu magnífico corpo, a sua lendária beldade e os dotes entre os lençóis ainda
encantavam Afonso Henriques, mas não eram novidades. O meu melhor amigo filhava
Chamoa quando queria e logo pensava no assunto seguinte. Em tudo menos em mim, protestava
ela. Só um transtorno, um sobressalto, um abalo poderoso na identidade real, poderia
devolver Chamoa à primazia do passado. Porém, sem o testemunho de Egas Moniz, esta
temia confrontar o rei de Portugal com uma sórdida história, vaga e por esclarecer.
Por isso, continuava calada. Será um erro? Deveria falar antes que a outra chegue?,
perguntava-me constantemente. Mas também eu vivia atormentado com a intriga de
Compostela, que me provocava o terrível susto da confusão de identidades. A
mera possibilidade de a troca de crianças ser verdadeira e de eu ser um dos
envolvidos provocava-me um abismal terror. Não sei o que fazer, disse-lhe.
Por isso, calei-me também, tal como
Chamoa, e foi nesse silêncio cúmplice que rumámos, no final de Março, a Montemor,
onde desembarcou finalmente aquela que viria a ser a primeira rainha de Portugal
(?, não será dona Teresa?, jdact) Mafalda da Sabóia. A francesa chegou!,
gritou-se nessa manhã. O barco partira da Vascónia e o rei de Portugal decidiu que
uma comitiva real o devia receber. Estávamos todos lá, só faltando o meu pai. Peres
Cativo engalanara-se com um bonito balandrau azul-escuro e Gonçalo Sousa, o alferes
comandante das nossas tropas, compusera o rabo-de-cavalo e vestia uma dalmática
verde-escura, cujas mangas eram demasiado largas, como sempre.
Já João Peculiar, arcebispo de Braga,
usava um manto roxo, tal como Bernardo, o hispo de Coimbra, sendo ambos ladeados
pelos párocos que formavam o cabido da Sé da cidade, como se aquela fosse uma solene
festa do calendário religioso. Até o prior Teotónio, para surpresa geral, tinha
decidido apresentar-se, acompanhado pelos monges de Santa Cruz, atrás dos quais
se viam os poucos templários que havia de novo em Soure, onde a Ordem do Templo
se recompunha do massacre de há dois anos. Além destes, perto de mim e de minha
mulher, Maria Gomes, estavam também Mem, Chamoa, o filho desta, Pêro Pais, e o seu
amigo Gualdim Pais, e foi com curiosidade que observámos a atracagem do barco, uma
manobra tão demorada que o espirituoso Gonçalo Sousa se interrogou: estarão
arrependidos? Todos nos rimos, especialmente Chamoa, mas a embarcação lá acabou
por se imobilizar e saltaram para o cais de madeira alguns soldados, armados com
espadas e escudos. Serão os cruzados prometidos?, ironizou Gonçalo». In
Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras,
2017, ISBN 978-989-741-713-9.
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