domingo, 10 de setembro de 2017

Madre Paula. Patrícia Muller. «E se lhe marei o gato, haveria de fazer bem pior mais adiante. Mas sabia que tinha tempo. Tempo para me vingar, para cegar de raiva, chorar e arrepender-me. Tinha tempo»

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«(…) Até que, ao fim de alguns dias, a sorte sorriu. Madalena Máxima deixou entreaberta e porte da sua cela e o gatinho saiu. Apanhá-lo foi uma sorte, mas depois de tanto azar, a sorte não tinha outra hipótese comigo. O bichano escondeu-se atrás de uma coluna do corredor que levava à cozinha do convento. Pshhhhh, pshhhhh... A minha voz foi tão dengosa que até teria convencido um eunuco. O processo revelou-se mais complexo do que tinha imaginado. A faca roubada da cozinheira estava ferrugenta e o pêlo do gato impedia o golpe certeiro. Espetei uma, duas, três vezes. Ele gemeu, mas não esperneou. Senti pena daquela criatura a choramingar. Pensei em desistir. Depois lembrei-me dos meus pés, um diante do outro, vacilantes, nus, desprotegidos. A minha vergonha em troce da morte de um gatinho bonito que se enroscava em mim como se estivesse à procura do colo da mãe, já sangrento, já ferido e humilhado. Espetei mais cinco vezes. Ele morreu. Eu não chorei. As lágrimas tinham secado com o frio que teimava em não me abandonar. Ahhhhhhhhh... Madalena Máxima gritou quando descobriu. Pôs as freiras em alvoroço. Exigiu um inquérito à abadessa, ameaçou chamar o Santo Ofício (maldito) e instaurar um processo de bruxaria. Invocou o nome do Inquisidor Geral, Nuno Cunha Ataíde, para aterrorizar as restantes e conseguir respostas. Não as obteve. Se o Inquisidor soube, nunca agiu. E quem não age é porque não quer saber.
Madalena Máxima era poderosa. Mas não era todo-poderosa. Nunca suspeitou que eu pudesse estar envolvida no crime, pela simples razão de que nunca me considerou com importância suficiente. Não devias ter matado o bicho, Paula. O bicho não era culpado da dona que tinha. O bicho não era petulante e maldoso. Era só um bicho. A Luz levantou-me a voz. Estava zangada. Reconheci a centelha de energia nos seus olhos e sorri. Estava a ver que tinhas apagado por dentro. Tempo depois, confessou-me, com um sorriso matreiro, que tinha sido inquirida pela abadessa sobre o sucedido. Perguntou-me se eu sabia de alguém que pudesse ter cometido tal monstruosidade. Ela confia em mim. Mas não porque sou um túmulo inviolável. Confia em mim porque me acha insossa e inofensiva. Eu respondi que Madalena Máxima tinha um desejo absurdo de ser notada e que podia ter sido a própria a cometer o crime para depois se fingir de chorosa e provocar a pena nas outras... A abadessa considerou a minha opinião.
A nossa intimidade já se restaurara como se não houvesse sido perturbada. Fazíamos tudo juntas. A Luz contava-me os segredos das outras monjas, os romances de Odivelas, as ligações entre freiras e homens, os perigos da noite entre as paredes da casa do Senhor. Foi ela quem me relatou o romance pecaminoso de Madalena Máxima. Naqueles dias, o convento de Mafra estava a ser erigido, a promessa paga de el-rei para ter um filho, milagre que demorou três anos a acontecer. o Palácio da Ribeira conhecia o mesmo destino, à custa do trabalho esforçado de milhares de operários, a quem não eram pagos salários. Os soldados também não recebiam o que lhes era devido. A capela de S. João Baptista custou milhões de cruzados e o ouro do Brasil minguava. Dizia-se que el-rei não fazia caso disso. Mantinha a mesma vida faustosa de sempre. Mandou o cardeal Cunha a Roma para impressionar o papa com o dinheiro português e disse que, se por acaso este não se impressionasse, então que o ouro fosse atirado ao rio Tibre para mostrar a nossa opulência. Assim era João. Fabricava moedas de ouro para pagar às pu… que o serviam, aos cardeais e bispos que o bajulavam e mediavam a sua complicada relação com Deus. Antes de João, não se cunhava ouro.
Foi o homem que fez saber ao mundo que não éramos inferiores. Que me disse a mim que era superior. Pobrezinha, tens uma visita. Aliás, bem me surpreende que tal pessoa te queira ver, mas há gostos que não se discutem. Detestável Madalena. E se lhe marei o gato, haveria de fazer bem pior mais adiante. Mas sabia que tinha tempo. Tempo para me vingar, para cegar de raiva, chorar e arrepender-me. Tinha tempo». In Patrícia Muller, Madre Paula, Edições ASA II, 2014, ISBN 978-989-232-783-9.

Cortesia de ASA/JDACT