Constança
Paço
de Coimbra, Reino de Portugal, 1330
«(…) O silêncio apoderara-se da
câmara do rei. O triunfo fora curto. Afonso IV, pouco dado a resignações ou a entregar-se
ao destino, travava uma luta íntima. Nem quebrara ainda o jejum, naquela manhã.
Encostou-se ao espaldar alto da cadeira, de cotovelo sobre um dos braços, para
apoiar o queixo sobre a mão aberta em concha. Não manifestava a sua pose qualquer
sinal de descanso. Pelo contrário, todos os presentes sabiam que o rei de Portugal
se mortificava de preocupação. Ao lado do marido, a rainha dona Beatriz pousara
sobre o colo as mãos apreensivas, cobertas com anéis de esmeraldas. Um rei
jamais quebrava a sua palavra, era esta a verdade que transtornava a mente do
soberano. Da palavra honrada lhe vinha o apreço do povo e o respeito fora de
portas. Não era longínqua a promessa firmada em tratado com Castela. Fora dia de
festa, e não era para menos. Prometendo o casamento dos seus dois filhos com príncipes
castelhanos, o monarca alardeara ao reino uma geração de paz, que sempre trazia
abastança e mesa farta.
Afonso IV de Portugal juntara a sua
assinatura à de Afonso XI e já cumprira uma parte do que lhe cabia. Não sem tristeza,
até as lágrimas lhe haviam assomado aos olhos quando entregara a filha Maria, de
celebrada beleza e que muito amava, ao rei de Castela. Mas ocultara de todos o seu
desassossego, sabendo que espezinhara o orgulho de Juan Manuel, amigo de Portugal,
reino que conhecia bem. Havia quem defendesse que o ambicioso fidalgo castelhano
até sobre a coroa portuguesa julgava ter direito, mas essa especulação fantasiosa
incomodava pouco o rei Afonso IV, outros delírios lhe tiravam o sono. O mais recente
era a renúncia do que ainda restava por cumprir do tratado firmado com o
castelhano: o enlace do seu herdeiro, o infante Pedro, com dona Branca de
Castela, prima de Afonso XI e do próprio príncipe português. A moça viera para Portugal
ainda criança, a aguardar idade nubente. Era esposa no papel e â espera da consumação
futura do matrimónio ameaçava tornar-se um sério embaraço, desde a rejeição que
o infante resolvera tornar pública e irreversível.
Afonso IV endireitou o corpo. Que
vos disse o infante?, questionou, virando para Lopo Fernandes Pacheco o olhar raiado
de vermelho, da noite em branco. O principal conselheiro e braço-direito do monarca,
sempre inteirado dos pensamentos d'el-rei, fez um leve aceno com a cabeça, antes
de falar. Aguardara pacientemente a sua deixa, sabedor do poder da sua palavra sobre
as decisões do soberano. Que se desgostou da infanta, senhor, ripostou, sem rodeios.
Que fundamentos apresentou? Que é falha de entendimento. Pobre de espírito, dizeis?,
tornou o monarca. Assim mo assegurou. Aquele repúdio custaria a paz a Portugal,
pensou el-rei, sentindo crescer a cólera pelo desmando do seu herdeiro, que desbaratava
muitos anos de bom governo e ágil negociação. A rejeição de Branca abalaria também
as relações de Portugal com o reino de Aragão, cujo soberano, Afonso IV, era tio
da infanta. A aliança aragonesa há muito que servia os interesses portugueses, contra
a hegemonia castelhana na Península. O papa não se furtaria à anulação, continuou
o conselheiro, à laia de consolo.
Afonso acenou. Olhou a sua mãe, a
rainha-viúva Isabel, tia do monarca de Aragão, que o povo apelidava de santa.
Já raramente abandonava o Mosteiro de Santa Clara, de Coimbra, onde entrara sem
tomar votos depois da morte do marido, dedicada à caridade e às orações. Mas nunca
deixava de acudir a uma discórdia familiar, já mediara tantas e graves nas muitas
décadas que levava no reino português. A velha senhora, o semblante louro fragilizado
por muitos anos de jejuns, penitências e infortúnios, transmitiu ao filho paciência
com o olhar sereno. Escreveria para Aragão, disse. O parentesco dos noivos apressaria
a decisão da Igreja, contrária a enlaces de sangues próximos. Mas não travará a
ira de Castela, respondeu-lhe Afonso. Era imprescindível não acicatar os ânimos
de Afonso XI, para segurança das fronteiras do reino e do bem-estar da sua filha
Maria. Cresciam rumores de devassa na corte castelhana por via dos excessos do monarca,
de génio intratável, e por conta da paixão pela cortesã Leonor Gusmão, que não
amortecera com o casamento português. Era mais um caso de alcova a passar para a
política, fazendo perigar alianças e tratados de gerações. Era assim o amor dos
homens, tão capaz de cegueira como de violência, quando eram tomados pela luxúria.
Chamai o infante, ordenou Afonso a Lopo Fernandes Pacheco. Quero vê-lo a sós». In
Isabel Machado, Constança, A Princesa Traída por Pedro e Inês, A Esfera dos
Livros, 2015, ISBN 978-989-626-718-6.
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