De
Malines a Espanha, com Ida para Portugal
«(…)
Era uma atitude assumida, bárbara também, pois roubar a irmã à mãe era o mesmo
que assaltar o resto de sanidade que lhe restava. Louca, sim, mas se não lhe
chegou nenhum sentimento quando encarou a filha mais velha, a mais nova era a
sua razão de viver, como se a vida da menina fosse o vigor de que precisava para
obter uma loucura normal. Perante o assalto ao mais íntimo de si, dona Joana
esteve três dias sem comer, a chorar e a babar-se, até que, à vista do
sofrimento revelado no desaprumo das acções que a transfiguravam, Leonor cedeu
às súplicas da mãe, optando por seguir viagem como o irmão Carlos planeara, com
o propósito de, nem mais nem menos, fazer-se coroar rei de Espanha. O futuro
rei do universo, exagero semântico, só isso, pois dizia-se que o Sol nunca se
punha no império de Carlos V, viera a Espanha a pedido dos governadores, uma
força capaz de desagregar o reino espanhol, tantos eram os territórios sob sua
tutela. Além disso, quem é que dava ouvidos a uma rainha sem autoridade nem
juízo? Se com dona Joana o reino perdia a glória que os seus pais, Fernando e
Isabel, os Reis Católicos, souberam construir, por que razão a grande nobreza
não requisitava Carlos, uma vez que atrás de si se revelavam poder, riqueza e
ambição, qualidades que depressa se fariam sentir no governo de Espanha? É que
o jovem já tinha quase dezassete anos, idade mais do que suficiente para mandar
e ser obedecido.
A
14 de Fevereiro de 1516, o infante Fernando, o irmão que nunca saíra de
Espanha, depois de reunir o Conselho Real, escreveria a Carlos pedindo-lhe que
assumisse o governo de Espanha: beijamos os vossos pés e reais mãos (...)
suplicamos humildemente a vossa alteza, pois a sua vinda é tao desejada de todos
e necessária para o bem e sossego destes reinos e os naturais dele e súbditos de
nossa alteza, tenha por bem vir a eles. E lá veio Carlos, arrastando consigo a
mana Leonor. Mas havia quem não gostasse. Os do reino de Aragão desconfiavam do
jovem arquiduque, viam-no como um intrometido do Norte da Europa na alteridade
castelhana, suspeitavam da sua honestidade, achavam que o que ele queria era
juntar mais poder ao que já tinha. Ultrapassada esta dúvida, outro problema se
levantou. Dona Joana, maluca ou não, ainda era a rainha de Espanha. Os súbditos
deviam-lhe menagem. Como haveria Carlos de resolver a questão? Para o futuro
Carlos I de Espanha essa questão não continha qualquer dificuldade, ou não
fosse ele amado pela nobreza, quase tanto como a mãe amou o pai.
Não
foi difícil baralhar o já confuso pensamento de dona Joana. Pressionada a
abdicar, fê-lo de pronto, certamente sem saber muito bem o que isso
significava. Estava senil, habituada a um certo bem-estar junto dos seus
servidores mais chegados, mais não queria do que um reino só para si em cem
metros quadrados: as aias e as amas de companhia para a entreterem, a filha mais
nova junto de si, adorável criança que talvez lhe trouxesse à memória
corrompida a lembrança de dias felizes. Fora isto, que a deixassem com os seus
pensamentos, sadios ou inquinados, pouco lhe importava, de certeza organizados
na imagem do marido que amou até à loucura. Vencidos alguns protestos de certos
governadores, poucos, comparados com os que queriam Carlos a governar, o
arquiduque fez-se coroar em São Paulo de Valladolid como Carlos I de Espanha,
jurando, no entanto, que se Deus Nosso Senhor voltasse a dar juízo à mãe,
ceder-lhe-ia o reino, voltando a governar a Flandres e o resto que por lá
havia, e era muito, até que a matriarca voltasse outra vez ao que fora ou
morresse. As vidas do novo rei de Espanha e da sua irmã casadoira estavam a ser
empurradas por um não sei quê de bonança, um destino que parecia trilhar o
caminho do Jardim das Delícias, o tal sítio onde Adão e Eva, sem planeamento,
encheram o mundo de malfeitores e inocentes». In Jorge Sousa Correia, A Traição
de D Manuel I, Clube do Autor, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-724-262-5.
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