sábado, 4 de dezembro de 2010

João de Barros: «Décadas da Ásia». «Poucos sabem que as «Décadas», além de serem um hino às glórias nacionais, contêm importantes aspectos estéticos. Dá-se pouca atenção ao lado artístico da obra, por uma razão muito familiar a todos que estudam a literatura portuguesa de quinhentos: a falta de uma boa edição»

Cortesia de trasosmontes

João de Barros, historiador da gesta portuguesa na Índia, é uma figura conhecida de muita gente … pelo menos de nome. Mas poucos sabem que as «Décadas», além de serem um hino às glórias nacionais, contêm importantes aspectos estéticos. Dá-se pouca atenção ao lado artístico da obra de Barros, por uma razão muito familiar a todos que estudam a literatura portuguesa de quinhentos: a falta de uma boa edição.

Hoje, a única edição das «Décadas» acessível ao público é o fac-símile incompleto editado pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda.

Décadas da Asia
(Décadas da Ásia de João de Barros. Texto apresentado por T. F. Earle, ed. em CD-ROM. Lisboa: CNCDP/Oxford: Centre for the Study of Portuguese Discoveries, 1999)

Década I, Livro VIII

Capítulo Primeiro.
Do modo que se navegavam as especearias té virem a estas partes da Europa, ante que descobríssemos e conquistássemos a Índia per este nosso mar Oceano; e das embaixadas que os mouros e príncipes daquelas partes mandaram ao Soldão do Cairo, pedindo-lhe ajuda contra nós.

Cortesia de livrariaultramarina 
Como toda esta nossa Ásia vai fundada sobre navegações, por causa das armadas que ordinariamente em cada um ano se fazem pera a conquista e comércio dela, e as cousas que pertencem a sua milícia imos relatando, segundo a ordem dos tempos, convém, pera melhor intendimento da história, darmos a geral relação do modo que se naquelas partes de Ásia navegava a especiaria com todalas outras orientais riquezas, té virem a esta nossa Europa, ante que abríssemos o caminho que lhe demos pera este nosso Mar Oceano, peró que em o tratado do Comércio copiosamente o escrevemos.

E também é necessário que, quando falarmos nesta navegação e comércio da Índia, não se há de entender que estas duas cousas estão limitadas em aquelas duas regiões, a que os antíguos chamaram Índia dentro do Gange, e Índia além do Gange. Porque as nossas navegações e conquista daquela parte, a que propriamente chamamos Ásia, não se contém somente na terra firme, que começa em o Mar Roxo, onde se ela aparta da África, e acaba na oriental plaga, a que ora chamamos a Costa da China, mas ainda compreendem aquelas tantas mil ilhas, a esta terra de Ásia adjacentes, tam grandes em terra e tantas em número, que, sendo juntas em um corpo, podiam constituir outra parte do Mundo, maior do que é esta nossa Europa. Por cuja causa em a nossa Geografia, destas e doutras ilhas descobertas fazemos a quarta parte em que se o orbe da terra pode dividir, porque muitas estão tam distantes da costa, que lhe não pertencem por adjacência ou vezinhança.

Cortesia de dhm
Per todas as quais partes, ao tempo que descobrimos a Índia, assi os gentios como os mouros andavam comutando e trocando as mercadorias por outras (segundo a natureza dispôs suas sementes e fructos, e deu indústria aos homens, em a mecânica de suas obras). As que jaziam além da cidade de Malaca, situada na Áurea Quersoneso (nome que os geógrafos deram àquela terra), assi como cravo das Ilhas de Maluco, noz e massa de Banda, sândalo de Timor, cânfora de Bornéu, ouro e prata do Líquio; com todalas riquezas e espécies aromáticas, cheiros e polícias da China, Jaua e Sião e doutras partes e ilhas a esta terra adjacentes, todas, no tempo de suas monções, concorriam àquela riquíssima Malaca, como a um empório e feira universal do Oriente. Onde os moradores destoutras partes, a ela ocidentais, que se contém até o estreito do Mar Roxo, as iam buscar a troco das que levavam, fazendo comutação de as por outras, sem entre eles haver uso de moeda.
Porque, ainda que ali houvesse muita cópia de ouro de Samatra e do Líquio, em que na Índia se ganhava mais que a quarta parte, era tanto maior o ganho das outras, que ficava o ouro em tam vil estimação, que ninguém o queria levar.

E como Malaca era um centro onde concorriam todos os navegantes que andavam nesta permutação, assi os da cidade de Calecute, situada na Costa de Malabar, e os da cidade de Cambaia, situada na enseada que tomou o nome dela, e os da cidade Ormuz, posta na Ilha Geru, dentro na garganta do Mar Pérsico, como os da cidade Adem, edificada de fora das portas do Mar Roxo, todos com a riqueza deste comércio tinham feito a estas cidades mui ilustres e celebradas feiras. Porque não somente traziam a elas o que navegavam de Malaca, mas ainda os rubis e lacre de Pegu, a roupa de Bengala, aljôfar de Calecaré, diamantes de Narsinga, canela e rubis de Ceilão. pimenta e gengivre e outros mil géneros de espécias aromáticas, assi da Costa Malabar, como doutras partes onde a natureza depositou seus tesouros.

Cortesia de afroasiabras
E as que desta parte da Índia se ajuntavam em Ormuz, leixando ali, a troco doutras, as que serviram pera as partes da Turquia e da nossa Europa, eram navegadas per este Mar Pérsico té a povoação de Batsorá, que está nas correntes do Rio Eufrates, a qual ora é a cidade célebre com o favor que lhe deram os nossos capitães de Ormuz. No qual lugar eram repartidas em cáfilas, as pera Arménia e Trapesonda e Tartária, que jaz sobre o Mar Maior, outras pera as cidades Alepo e Damasco, té chegarem ao porto de Barute, que é no Mar Mediterrâneo, onde as vendiam a venezeanos, genoeses e catelães, que naquele tempo eram senhores deste trato.
A outra especearia que entrava per o Mar Roxo, fazendo suas escalas per os portos dele, chegava ao Toro ou a Suez, situados no último seo deste mar, e daqui, em cáfilas, per caminho de três dias, era levada à cidade do Cairo, e di, per o Nilo abaixo, a Alexandria, onde as nações que acima dissemos a carregavam pera estas partes da Cristandade, como ainda agora em alguma maneira fazem.
E per qualquer destes dous estreitos que esta especearia entrava nas terras de Arábia, quando vinha à saída, era per os portos do Estado do Soldão do Cairo. Cuja potência, ante de ser metida na Coroa da Casa Otomana dos Turcos, começava no fim do reino de Tunes, em aquele cabo a que ora os mareantes de Levante chamam Ras-Ausem e Ptolomeu - Bóreo Promontório -, e acabava em a enseada chamada per eles o Golfão de Laraza, por razão de a povoação deste nome que ali está; a qual, segundo a situação dela, parece ser a vila a que Ptolomeu chama Serrepolis, na qual distância de costa pode haver trezentas e sessenta léguas, que contém em si muitos e mui célebres portos. E per dentro do sertão se estendia per o Nilo acima, à região Tebaida, a que os naturais ora chamam Caida, té chegar à antiquíssima cidade Ptolomaida, cujo nome ora é Hicina, que acerca daqueles bárbaros quere dizer esquecimento; e dali vinha beber ao Mar Roxo. Passando o qual, entrava na terra de Arábia, vindo a vezinhar com o Xarife Baracate, senhor da Casa de Meca, atravessando os bárbaros daquele deserto, té dar consigo em a cidade chamada Bir, que jaz nas correntes de Eufrates, e tornando fazer outro curso contra o Ocidente, acabava em o Golfão de Lanza, que dissemos.

Cortesia de alvarohfernandes
No qual circuito de terra se compreendia grã parte da Arábia Deserta, toda a Petrea, Judea e muita da Síria, com todo Egipto a que chamam Metser de Mitsraim, nome per que os hebreus e arábios nomeam a região de Egipto, por esta cidade Cairo ser a cabeça dele, dando o nome do todo à parte.
E ao tempo da nossa entrada na índia, era senhor deste grande estado Canaçau, a que alguns dos nossos chamam Cansor, o qual se intitulava com este apelido Algauri, de que se ele muito gloriava, por lhe ser posto por causa de a grã vitória que houve de um rei da Pérsia, junto de a alagoa chamada Algaor, que faz o Rio Eufrates, entre Enz e Bagadade, donde lhe deram por apelido Algauri.

Neste mesmo tempo, reinava em Turquia, Celim, décimo da geração otomana, e era senhor de Meca o Xarife Baracate, entre os mouros mui celebrado em nome, não tanto por seus feitos, quanto por o grande discurso de tempo que viveu neste estado. E era senhor de Adem Xeque Hamede, o qual vezinhava com este outro Xarife por parte da terra chamada Jazem, que é dentro das portas do Estreito, defronte da Ilha Camarão. E era Rei de Ormuz Ceifadim, deste nome o segundo, e do reino de Guzarate, Machamude, o primeiro deste nome.
Assi estes Reis e Príncipes, como os mercadores per cujas mãos corria o comércio da especearia e orientais riquezas, vendo que com nossa entrada na Índia, per espaço tam breve como eram cinco anos, tínhamos tomado posse da navegação daqueles mares, e eles perdido o comércio de que eram senhores havia tantos tempos, e sobretudo éramos ua bofetada na sua Casa de Meca, pois já começávamos chegar às portas do Mar Roxo, tolhendo os seus romeiros, eram todas estas cousas a eles tam grã dor e tristeza, que não somente àqueles a que tínhamos ofendido, mas a todos em geral era o nosso nome tam avorrecido, que cada um em seu modo procurava de o destruir.

Cortesia de freguesiasantiagodelitem 
E como a gente a que isso mais tocava eram os mouros que viviam no reino de Calecute, ordenaram de enviar a embaixada ao grã Soldão do Cairo, como a pessoa que podia resistir a este comum dano, fazendo com o Samori, Rei da terra, que lhe enviasse um presente com outra tal embaixada, notificando-lhe os grandes males e danos que de nós tinha recebido, por defender os mercadores do Cairo residentes na sua cidade Calecute. Tomando por conclusão de seu requerimento, que lhe mandasse a grossa armada com gente e armas pera nos lançar da Índia, que ele a proveria de dinheiro e mantimentos, como lá fosse.

Cortesia da Fundação Calouste Gulbenkian/JDACT