domingo, 18 de setembro de 2016

A Cruz de Esmeraldas. Cristina Torrão. «Porque é que o destino lhe fora tão cruel? Também ele nascera no seio de uma família fidalga e, no entanto, era obrigado a fabricar armas e a ferrar os cavalos dos ricos e poderosos para sobreviver»

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Lusbuna. Verão de 1142
«(…) Zubaida libertou-a. Pela segunda vez nesse dia, presenteou-a com um dos seus raros sorrisos e disse, enquanto lhe afagava os caracóis: não tenhas medo! Deus nunca te abandonará! O sol de Dezembro mais não era do que uma estrela distante e fria a espalhar a sua luz desmaiada na praça da catedral de Colónia, onde decorria o mercado. Depois de ter passado horas a suar na ferraria, Konrad aconchegava-se enregelado na sua capa de lã grosseira. Ainda assim, o frio evitava que chapinhasse em lama, ao não permitir que a neve derretesse. Uma caneca de vinho quente, temperado com canela, cravinho e pimenta, aquecer-lhe-ia as entranhas... mas não seria melhor poupar o dinheiro? Na verdade, um ajudante de ferreiro nem se podia queixar, tinha mais na sua bolsa do que a maioria do povo. Konrad alimentava, contudo, planos ambiciosos e precisava de todas as moedas que ganhasse. Reparou num grupo de fidalgos que segurava canecas fumegantes nas mãos e o cinzento azulado dos seus olhos congelou, como se tivesse engolido a neve. Munidos de mantos forrados a peles, os fidalgos não precisavam de se encolher do frio. Barretes, igualmente forrados, protegiam-lhes as cabeças e as botas grossas, ao contrário das suas sapatas finas de couro de cabra, evitavam que o gelo se lhes entranhasse nos pés. Riam-se, satisfeitos. Konrad cerrou os dentes e afastou-se. Porque é que o destino lhe fora tão cruel? Também ele nascera no seio de uma família fidalga e, no entanto, era obrigado a fabricar armas e a ferrar os cavalos dos ricos e poderosos para sobreviver. Não fora seu pai um parvo, que perdera o património num torneio de cavalaria! Konrad não se lembrava bem de sua mãe, morrera tinha ele cinco anos, nem da irmã, que não sobrevivera à infância. O seu pai, Lothar, um cavaleiro com castelo próprio, começou, depois da morte prematura da esposa, a beber e a desleixar-se nas suas obrigações para com o senhor a quem prestava vassalagem. Com oito anos, Konrad mudou-se, como era hábito, para o castelo de um nobre conhecido, a fim de iniciar a sua educação. Começou como pajem, com catorze anos passou a escudeiro e com vinte foi armado cavaleiro. Entretanto, o pai tornou a casar, o que restabeleceu a ordem na sua vida. A nova esposa deu-lhe outro filho, Johann, mas mais uma vez o azar bateu à porta da família. Depois de alguns desmanchos, a senhora morreu ao dar à luz uma criança, que não sobreviveu sequer uma semana, e Lothar tornou a deixar-se dominar pela bebida.
Há três anos atrás, cheio de dívidas, o homem apostara o seu património num torneio de cavalaria e perdera tudo. Morrera pouco depois, ao envolver-se numa rixa de taberna, onde fora afogar o seu desespero. Konrad, que acabara de ser armado cavaleiro, viu-se de um momento para o outro destituído de herança. Ele e o irmão foram rejeitados pelo próprio nobre que o educara, não tinham sequer onde morar e viram-se obrigados a pedir ajuda a Otmar, o melhor ferreiro de Colónia, que havia trabalhado para o pai. Otmar ferrava os cavalos dos melhores clientes, mas a sua especialidade eram as armas. Usava um aço especial para espadas, um segredo só dele, que as fazia muito cobiçadas. Também manufacturava cotas de malha, um trabalho de filigrana, que poucos dominavam: milhares de pequenas argolas eram produzidas uma a uma e depois fundidas ou entrelaçadas umas nas outras. Otmar não hesitou em empregar o atlético Konrad, mas para o irmão magrinho, de doze anos, não havia trabalho na sua oficina. A única solução que o mais velho encontrou foi confiar o rapazito à guarda dos monges beneditinos de Deutz, mosteiro situado na margem direita do Reno, em frente à cidade de Colónia. Os monges prontificaram-se a ficar com Johann, na condição de que o rapaz trabalhasse em todo o lado, onde dele precisassem, fosse na cozinha, na ervanária, nos estábulos, no hospital ou na casa de hóspedes. A Konrad custou-lhe deixar o irmão entre os monges, mas estava decidido a, assim que pudesse, o ir buscar e fazer dele um bom cavaleiro.
Depois da sua volta pelo mercado, Konrad regressou à ferraria. Aí, libertou-se da capa, da túnica e até da camisa interior, pôs o avental de couro em cima do tronco nu e amarrou os cabelos castanho-claros num rabo-de-cavalo. Com a ajuda de uma tenaz, tirou o pedaço de ferro, que antes da pausa do almoço deixara no forno e começou a martelá-lo. Tudo fez sem dizer palavra e Otmar comentou: a volta pelo mercado parece que não te fez muito bem! Konrad não respondeu. Continuou a martelar aquilo que mais tarde seria a ponta de uma lança, como se quisesse desfazer a bigorna que lhe servia de apoio. O ferreiro trocou um olhar com os seus outros dois ajudantes e perguntou: tornaste a sonhar com coisas que não podes pagar? O jovem parou de martelar e fitou o mestre. Os seus olhos, que na parca iluminação da oficina eram cinzentos como a fuligem, escondiam a revolta que o devorava, e ele limitou-se a replicar: isso é comigo. Otmar abanou a cabeça: devias aceitar o teu destino, homem. Enquanto sonhares com uma vida de cavaleiro glorioso, não encontrarás paz. Konrad respirou fundo, a fim de não agredir o único homem que o ajudara na fase mais difícil da sua vida, e retomou o seu trabalho. Mas o mestre insistiu: o teu futuro não é tão negro como isso. És forte, esperto e trabalhador, podes ser ainda melhor ferreiro do que eu. E tu sabes que eu deposito a máxima confiança em ti... Konrad sabia aonde ele queria chegar». In Cristina Torrão, A Cruz de Esmeraldas, Edição Ésquilo, 2009, ISBN 978-989-809-261-8.

Cortesia de Ésquilo/JDACT