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«Por
fim, na entrada desse frio e rigoroso inverno, já tinha vencido tudo. De envelhecido
e gasto, di-lo-eis um trapo que se deita fora ou um doido de cabelos brancos
estacados, a falar sozinho. Toda a gente o conhecia. Ó Gêbo! Ahn? A mulher
azedara com a pobreza e passava horas e horas a chorar, atirada para um canto,
ou pregava dias inteiros em monólogos cheios de gritos, de sonho espezinhado,
todos lavados em lágrimas. Se tudo acabasse!... Mas nem a Morte escuta os
desgraçados, nem o tempo se apressa; vai moendo na sua mó as tristezas, as
aflições e o pão negro. O desespero daquela criatura caía em impropérios sobre
a cabeça do Gêbo espantado, a suar, e a quem nem a própria desgraça conseguia
empedernir o coração. Todos os dias eram da mesma forma sombrios e tristes.
Isto de chorar um dia e outro dia, dá a impressão de que chove e se não sai do
inverno. Outras vezes calavam-se, mas a discussão era talvez maior, era talvez
pior... Existência sem cor, que se gasta fio a fio, em que a desgraça se
assemelha à desgraça, os gemidos se não ouvem, em que cada um para o seu lado
interroga a vida e as horas passam acinzentadas deixando-os todos três
curvados, todos três absortos. Porque a vida interior nunca cessa, nem no sono,
este monólogo com que a vamos comentando até ao fim, que não tem existência
real e que vivo é imenso. Nos homens e nos bichos. Talvez também nas árvores.
Nuns desvairado, noutros humilde, baixinho, quase pueril. A vida não é senão
este monólogo furioso ou ridículo e mais dorido quando é concentrado e sem gritos...
Mas ela não podia mais e irrompia: deste, emprestaste a toda gente. E agora?
agora? Riem-se de ti inda por cima, e ninguém te ajuda. Morremos à fome. É o
mesmo, mulher, é o mesmo. Paciência... O pior é de nós, de mim e da pequena. Pois
é o que me aflige, que por mim quem me dera morrer! Não fosses tolo! Olha de
teus amigos como trepam. Ó mulher, mas que hei de eu fazer? Tu não me dirás o
que hei de fazer? Roubá-lo! roubá-lo!... Às vezes esqueciam-se e ainda pairavam
em torno duma esperança, a qual, agora nascida, logo a desgraça calcava. A mais
humilde poeira de ilusão bastava para que todos três gelados pela desventura,
se sentassem na enxerga, prontos a edificar os mais altos castelos e esquecidos
de tudo. Só a filha sofria em silêncio, magra e com um sorriso tão triste que
lembrava certas horas em que há sol e chuva misturados. E como o Gêbo lhe
queria! Pelo seu destino que seria amargo, e por ser o único ser no globo, que
lhe não dizia más palavras. Lá ia indo pela vida fora, coçado e com um ar de
aflição que fazia rir. Parecia amachucado: as marcas dos encontrões nunca mais
lhe saíam. A mulher passava os seus dias numa luta desesperada com a desgraça, arrancando-lhe
os últimos trapos, disputando-os um a um até vê-los desfeitos. Ao fim do dia
ouviam-se os passos vagarosos do velho nas escadas e a sua respiração, anh! Anh!,
sufocada. Aí vem ele..., murmurava. O Gêbo entrava e ela logo, sôfrega, morta
por desabafar o que todo o dia ruminara: até que vieste, homem! E então? Conta.
Então há alguma esperança? Não há nada, mulher. E sentava-se arrasado. Também,
ninguém faz caso de ti. Que és tu? Sabes o que tu és? Eu não, o quê? Um ente
inútil. Não há ninguém que se não ria de ti, das tuas desgraças, das tolices
que tens feito... Que é do dinheiro que tanto nos custou a poupar? Eu sei lá
agora do dinheiro! Não falemos mais nisso... O que lá vai, lá vai. Pois é o que
tu queres... Mas hei de falar, hás de me ouvir. Deste cabo de tudo, davas
dinheiro a toda a gente... Tinhas-me a mim, tinhas a pequena. Reparasses, era a
tua obrigação. Ó mulher, ora tu que todos os dias vens com a mesma seca. Não me
basta a minha aflição!... De que serve isso agora? De que serve? Serve de
muito! À noite, à luz do petróleo, o Gêbo fazia escritas com um cobertor pelos
ombros e as mãos geladas de frio. A filha, sumida na sombra, compunha-lhe a
roupa, e a mulher talhava, passeando na sala. Batia a luz do candeeiro na cara
oleosa do Gêbo, no nariz enorme, nos seus olhos tristes e, do outro lado da
mesa, só se viam iluminadas as mãos de Sofia, toda a noite trabalhando sem
ruído e sem descanso. Já tive uma letra tão linda e agora... Os desgostos
cansam a gente. É de ti! É de ti! Outros têm penas, desgostos, caem e tornam a
levantar-se..., dizia-lhe a mulher. Têm sorte, é o que é. Para tudo é preciso
sorte. E curvado sobre os livros contando, murmurava mais baixo: ... E vão
sete... Sorte! Sorte! A culpa é tua que não tens energia nenhuma. Procura!
Deixas-te ficar espapaçado para ai... Tu o que queres é comer e dormir. Ó
mulher!... E erguia o carão aflito, onde batia a claridade da chapa. Viam-se-lhe
os olhos aguados. Ó mulher, a gente também perde as forças... Sempre a
desgraça! Sempre a desgraça!... Tudo nos corre torto! Mas... Tudo! Deixa-me!.. E
desatava a chorar. Então o Gêbo, aflito, a mão curta e gorda ronronando no papel,
mentia para lhe dar ânimo. Qualquer dia entro aí num negócio, tu verás... Não
te aflijas. E vão cinco... Também há de chegar o nosso S. Miguel. A desgraça há
de se cansar de nos perseguir. E o pão que trazia para casa era quase uma
esmola. Mas tanto mentia que chegava a iludir-se. Às vezes não sabia o que
havia de dizer. A desgraça gasta; a desgraça gasta até o sonho grotesco dos
humildes. E elas caladas olhavam e esperavam; pareciam suplicar-lhe. Mente! Ao
menos mente! E o velho inútil procurava um sonho ainda que fosse usado. A velha
reanimava-se. E outra vez passeava na sala, embrulhada no xale rapado. Não, que
é preciso sairmos deste atoleiro. Agora vai, agora vai, tu verás». In Iba
Mendes, Contos Portugueses, I volume, Livro 239, Projecto Livro Livre, Raul
Brandão, 2014, Poeteiro Editor Digital.
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