sábado, 17 de setembro de 2016

Novas Cartas Portuguesas. Maria Barreno, Maria Horta, Maria Costa, (As Três Marias). «Dizer a três a mesma realidade, analisá-la individualmente por vias rigorosas para convergir afinal nas mesmas grandes questões, fundir-se no dizer de outras, permanecer eu-tu-nós na constante irrupção da escrita»

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Pré-prefácio
(Leitura longa e descuidada)
«(…) A revolta da mulher é a que leva à convulsão em todos os estratos sociais; nada fica de pé, nem relações de classe, nem de grupo, nem individuais, toda a repressão terá de ser desenraizada (...) Tudo terá de ser novo (...) E o problema da mulher, no meio disto, não é o de perder ou ganhar, é o da sua identidade. Em poucas palavras fica dita a obra, desvendando o seu sentido, definida a sua procura. Fica claro que neste livro se trata da condição das mulheres. Daquilo que às mulheres é consentido ou negado. Do cerco ideológico que as retém prisioneiras. Da contradição de terem de passar pela igualdade para alcançarem a diferença e descobrirem a sua identidade. O que não fica dito, é importante acentuar, é a universalidade da obra. As Novas Cartas Portuguesas estão hoje traduzidas em 10 línguas, são objecto de teses de doutoramento, são levadas à cena em versões adaptadas por grupos de teatro em Nova Iorque e Paris. Elas inauguram um novo tempo na corrente literária do neofeminismo contemporâneo. A partir do nó evolutivo das Novas Cartas Portuguesas, a freira de Beja Mariana Alcoforado e o seu romance de amor, em pleno século XVII, surgem as mulheres deste século, em muitas e diversas situações e culturas. E é legítimo perguntar: porquê um tal eco? Que coisa nova foi dita? Que forma tão universalmente comum foi utilizada? Pela primeira vez na história do movimento feminista e da sua expressão literária a cumplicidade entre as mulheres foi ao mesmo tempo sujeito e objecto de toda a trama de um livro. Aí reside a sua espantosa originalidade. É certo que Simone de Beauvoir apontara para a cumplicidade das mulheres como uma teoria interpretativa da realidade. Mas nunca o severo rigor estilístico que a caracteriza lhe permitiu diluir-se numa escrita comum. Do mesmo modo, quando o novo surto feminista contemporâneo se exprimiu em literatura, foram sempre vozes singulares, identificáveis, que falaram de cumplicidade. Poucas, afinal, se lhe submeteram. A irman(dade) anunciada nunca atravessou o limiar da obra criadora.
Até 1971. Até às 3 Marias. Até que 3 mulheres portuguesas, escritoras, se põem a fazer um livro. A partir de então começa a escrita-cúmplice, inicia-se o processo que vai encontrar a sua expressão mais generalizada na simples referência aos nomes próprios de mulheres formando colectivos que organizam reuniões de trabalho, escrevem livros, publicam revistas. Para a escrita deixa de ter sentido a propriedade porque os bens que reparte são universais. A mulher que se diz no singular refere-se a um destino que é sempre plural. E nesse plural se vem a reconhecer cada história singular. Teia que se tece e se desfaz para de novo se tecer. Penélope agindo na história de hoje, instrumento de um destino voluntariamente adiado, comum destino das mulheres conscientemente reconhecido e construído. Dizer a três a mesma realidade, analisá-la individualmente por vias rigorosas para convergir afinal nas mesmas grandes questões, fundir-se no dizer de outras, permanecer eu-tu-nós na constante irrupção da escrita, tal é a aventura conseguida (sim, a ti que não sei distinguir das outras, não te apoio na tua distância crítica sobre esta unidade trabalhada e nunca conseguida.
No termo dessa aventura, está o livro, onde ficam escritas (inscritas) as exigências e os meandros da cumplicidade. No ponto de partida apenas três escritoras, cúmplices de uma conspiração de que não sabem nem as regras nem o objectivo. Por isso, começam de mansinho, como se brincadeira fosse. Brincadeira em que se refugiam (se buscam?) ao longo das cartas, dos poemas, das histórias, dos fantasmas. Brincadeira que faz recuar o tempo e logo anuncia a viagem ao centro delas próprias, o retorno ao mito da infância onde tudo, um dia, se decidiu para a mulher e seu destino. Considerai (...) a exposição de meninas na roda (...) Brincadeira conscientemente assumida, já que lucidamente nela falam as grandes e terríveis verdades: a lei da submissão, envolta na doçura aconchegada da casa dos pais; a lei da repetição, consentida no que é tido por acesso a uma educação de mulher. Desde menina obedeço, moldada a rendas, a linho, a costumes em casa de meus pais. Hábitos de fatos e fitas a formar-nos as formas. Bem entendo, porque bem pungentemente o mostrais, que a brincadeira (como todo o jogo) esconde sob o véu do faz-de-conta o patético da aventura, não é senão o seu lado possível, viável (vivível, afinal?). Nem sequer precisais de dizer para mostrar o que a brincadeira diz que ela é como se...» In Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta, Maria Velho Costa, Novas Cartas Portuguesas, 1972, edição anotada, Publicações dom Quixote, 1998, 2010, ISBN 978-972-204-011-2.
           
Cortesia PdQuixote/JDACT